A maldição de Arbon. Parte 17
XX.
Ari entrou pela porta da sala de estudos acompanhado por um homem mais
velho e elegante. Ele usava uma túnica de seda branca e se envolvia em uma capa
de veludo esverdeado. Possuía anéis dourados nos dedos e correntes prateadas ao
pescoço. O cabelo era grisalho e bem aparado, o semblante, duro. Com olhos
pesados, fitou Lissa demoradamente ao entrar e, então, demorou o olhar também
primeiro em Irkan e depois em Macus. Ari parou ao lado dele e disse à Lissa:
— O sacerdote Nélius está aqui para ouvi-la. Diga a ele apenas a verdade.
— advertiu com uma ligeira ameaça na voz.
— Bom... — falou Lissa — Não sei o que o sacerdote Ari já lhe contou,
senhor chefe Nélius, então não sei por onde começar...
— Comece por esclarecer suas ações na praia. — disse o homem em tom seco.
— Naquela noite, — começou a menina escolhendo as palavras — houve um
ataque durante o ritual e todas as pessoas se dispersaram porque ficaram com
medo. Inclusive o sacerdote Tífan desapareceu.
— Não comece apontando culpa nos outros e nem analise os fatos. Isso não
lhe cabe. Diga apenas o que se passou. — o sacerdote a olhava do alto e parecia
apressado.
A menina tremia, sentia sua estratégia vacilar, mas prosseguiu:
— Eu disse isso, pois foi o que me levou a fugir também. Como todos, tive
medo e...
— Então fugiu de sua responsabilidade porque estava com medo? Passou anos
de sua vida estudando e se preparando para um único momento e, de repente,
decidiu que isso não era mais importante e que poderia agir livremente sem
assumir as consequências por seus atos? Não pensou sequer por um momento no
povo de Arbon?
— Senhor... naquela hora... o ritual não foi completado, pois o sacerdote
Tífan não conseguiu ficar na praia, mas eu voltei e... não pude...
— O sacerdote Tífan, naquela mesma noite, regressou ao mosteiro, assumiu
sua culpa e recebeu seu castigo resignado como, aliás, você também deveria ter
feito... Mas já que quer falar sobre ele, conte-me o que a levou a matá-lo.
— Eu não... — ela engasgou e olhou para Ari. O outro permanecia encarando
o chão.
— O senhor agora há pouco falou em julgamentos precipitados. — Irkan
interveio. — Essa menina não matou ninguém. Nós testemunhamos.
— E o que foi que testemunharam, elfo? — Nélius acentuou o vocativo —
Irkan? — ele prosseguiu forçando a terminação da palavra — Irkann... —
continuou — É curioso alguém usar um nome assim. Não acha desrespeitoso vir a
nosso sagrado domínio e se autointitular dessa maneira?
— Não, senhor. — respondeu o elfo — Como deve compreender, nossos pais
escolhem nossos nomes antes de que possamos opinar com relação a qualquer
coisa. De toda forma, não acredito que um nome possa ser empecilho para se
considerar o testemunho de uma pessoa, não concorda?
— Absolutamente. — disse o outro — Ainda mais se tratando de alguém com
uma reputação como a sua. A propósito, qual o objetivo de sua vinda a nosso
povoado, Caçador? — ele pontuou outra vez o vocativo com o olhar faiscando rumo
ao elfo.
— No momento estou aqui simplesmente como testemunha e peço que considere
isso. — disse Irkan calmamente.
— Então, já que está ansioso por contar a sua história, diga-me: se essa
menina não matou nosso devotado sacerdote Tífan, como ele morreu?
— Ele caiu da mesa onde estava sujigando Lissa. — declarou Irkan.
— Então ela o empurrou. — deduziu o outro rapidamente como quem chega a
uma conclusão lógica.
— Ela não o fez. — respondeu Irkan calmamente — Estava paralisada pelo
terror, completamente rígida. E não teria forças para fazê-lo. Tífan era um
homem corpulento e ela, apenas uma criança.
— Então não compreendo. — disse o outro espalmando as mãos e dando de
ombros. — Quer dizer que ele caiu magicamente?
— Sim. — disse Irkan simplesmente.
Os vincos do rosto do sacerdote se estreitaram e ele se voltou para
Macus:
— Seu pupilo pensa da mesma forma?
— Exatamente. — disse Macus ignorando a provocação. — Aliás, caso o
sacerdote não tivesse caído, provavelmente ele teria matado a menina.
— Você acusa um homem morto?! — disse Nélius sobressaltado — Não tem
temor em seu coração? Que razão teria Tífan para matar esta criança?
— Ora! — Macus tornou — Não era o que o sacerdote faria com ela de toda
forma na praia? Aliás, — o jovem continuou — não creio que fosse apenas essa a
intenção do sacerdote... — ele se interrompeu ao lembrar-se da cena que
presenciara e engoliu em seco perturbado. Olhou para Lissa, a menina estava
impassível, porém o elfo sentia que ela ocultava seus sentimentos de dor.
Limpou a garganta e prosseguiu — Além disso, Tífan poderia estar ressentido por
ter recebido um castigo e Lissa não. Foi o senhor quem o castigou?
— Os superiores aplicam os castigos em nossa ordem. — respondeu Nélius
esquivando-se.
— Além disso, — tornou Macus — o sacerdote faltou com sua palavra, pois
disse ter perdoado esta inocente criança diante de nós, porém a arrastou no
meio da noite para o templo para subjugá-la. Não acredita que ele possa ter
sido punido pelos Kamms por ter descumprido sua palavra e desrespeitado a
pureza de uma alma? Isso não seria natural?
Foi a vez de Nélius limpar a garganta. E ele parou para pensar antes de
responder, abandonando a aparente impulsividade de antes.
— Está tentando dizer que os Kamms podem ter se voltado contra um íntegro
chefe de nossa ordem? Um fiel guardião dos costumes e das tradições...
— Um fiel que cometeu um erro grave. — lembrou Irkan.
— Como posso responder a tal afronta? — Nélius voltou-se para o elfo de
maneira severa.
— Reconhecendo o erro e identificando o verdadeiro culpado. — falou Irkan
tranquilamente.
— Veja, criança! — ele se dirigiu a Lissa de forma dura, elevando a voz,
e ela se assustou — Veja o que um erro pode provocar! Ainda assim não reconhece
sua culpa? Até quando sustentará essa situação? — o homem bufava.
Lissa tremia e não conseguia falar. Estava apavorada.
Nesse momento, Macus sentiu uma onda de frio e notou um lampejo de medo
nos olhos de Ari. O jovem elfo olhou de soslaio para o companheiro de Kaffa e
tornou a falar:
— Esta criança é uma alma pura e é inocente de tudo quanto lhe acusa,
senhor. Assim, não vejo porque seguir pressionando-a.
— Ela precisa responder por seus atos perante os Kamms! — insistiu
Nélius.
— A vontade dos Kamms é que ela viva sem sofrer. — voltou Macus — E que receba
o perdão. Acredito que o sacerdote Ari, que já lhe contou toda a história,
também tenha destacado esse ponto, não é mesmo sacerdote? — o elfo chamou o
outro, que até então permanecera em silêncio, a participar.
Ari passou por um solavanco, parecendo ser despertado de um pesadelo.
Seus olhos estavam assustados e ele apertava as mãos contendo um leve tremor.
— Senhor chefe... — Ari vacilou encarando Macus. O elfo parecia
concentrado e rígido e não lhe prestava muita atenção, mesmo assim o homem
prosseguiu: — Parece-me que a vontade dos Kamms é que... a criança viva.
Testemunhamos, no templo, a manifestação da Kamm da pureza e da vida
diretamente a esta criança. Não posso imaginar porque ela foi escolhida, mas me
parece que isso representa uma mudança que os Kamms nos propõem. E devemos
ouvi-los como sempre fizemos...
Nélius bufou preocupado, encarando o subordinado com incredulidade. Ari
baixara a cabeça e encolhido aguardava. Então o chefe olhou dele para os demais.
Naquele momento, aparentemente, nem Macus nem Irkan lhe prestavam atenção,
estavam rígidos. Sequer Lissa parecia reagir a suas palavras. Todos pareciam retirados
em si mesmos ou bloqueados por alguma espécie de encanto. Então Nélius avançou
em direção à criança.
Continua...
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