Pactos. Entre justos e pecadores. Parte 1
I.
Espartakus era ferreiro. Ele vivia em um pequeno povoado chamado Lakar,
localizado ao norte do Pântano dos Lamentos, na parte sul de Impéria, um dos
continentes de Arcaires. O velho Espartakus passara parte da vida trabalhando
na cidade portuária de Duegom produzindo diversos artefatos, inclusive os
bélicos. Mas, profundamente desgostoso em ver o produto de suas mãos usado para
ceifar vidas, tomou sua família e deixou para trás a fama e o conforto que
conseguira com seu primoroso trabalho e escolheu uma vida pacata no vilarejo de
Lakar. Tinha agora sete filhos e ensinava seu ofício a eles, de modo que
praticamente todos o acompanhavam na labuta noturna de moldar o ferro
diariamente, produzindo muitas das ferramentas que eram usadas no trabalho da
terra ou em outros afazeres, que não a guerra.
O filho menor, chamado Espartakus como o pai, vivia escapando do trabalho
na oficina. O rapaz tinha o espírito aventureiro e irrequieto e distraía-se
quando o pai lhe falava de tarefas monótonas. Já quando lhe contavam histórias,
quer de mundos conhecidos ou apenas imaginados, era capaz de ouvir por horas
seguidas sem se aborrecer. Ele desaparecia de vez em quando, metido em pequenas
aventuras, ora pelo pé das montanhas ao norte, ora pelas bordas do Pântano, e
sempre voltava para casa com um ar matreiro. Ninguém em casa conseguia se
aborrecer com ele, afinal, estava sempre narrando algum feito heroico ou alguma
história macabra de que ouvira dizer, o que acabava por distrair a todos.
Também não duvidavam de sua palavra, pois nunca fora de pregar peças.
A família de Espartakus era razoavelmente independente, embora a maioria
das pessoas de Lakar fosse composta por camponeses pobres que estavam sob a
influência de Tívan, um sujeito grandalhão que detinha a maior parte das terras
férteis dos arredores e para quem a maioria dos habitantes do povoado
trabalhava incansavelmente em troca de pequena parcela dos alimentos que colhia.
Sua área de cultivo se situava principalmente ao norte do povoado, na região
que se estendia do vilarejo em direção à Cordilheira do Espumante.
II.
Em Lakar, poucas coisas aconteciam. As pessoas trabalhavam diariamente
para manter o seu sustento e levavam uma vida tranquila. Produziam boa parte
dos alimentos de que necessitavam e organizavam, regularmente, festas em
homenagem ao deus Único.
Sabia-se que, no interior da cadeia montanhosa ao norte de Lakar, corria
um curso d’água ao qual as pessoas chamavam Rio Vermelho e, na região de seu
nascedouro, se erguia o Templo do Deus Único. A construção fora erguida na
porção sudeste da Cordilheira do Espumante, em um local de difícil acesso,
rodeado pelas montanhas e considerado sagrado. Naquele lugar viviam alguns
clérigos que transmitiam suas artes a seletos aprendizes, realizavam festas
anuais em nome de seu culto, cuidavam da segurança da edificação, além de se
devotarem à sacerdotisa consagrada ao deus Único.
Alguns peregrinos de Arcaires se dirigiam àquele local em determinadas
épocas do ano. Os habitantes de Lakar, porém, não costumavam visitá-lo, pois ocorria,
vez ou outra, de algum clérigo do Templo aparecer no vilarejo a fim de participar
das cerimônias dos devotos e recolher suas oferendas para o Único e seus representantes.
Devido à existência desse Templo, a vila de Lakar era ligeiramente
conhecida em Impéria, pois os viajantes, algumas vezes, costumavam procurar
abrigo nas terras dominadas por Tívan durante suas nobres jornadas de
aprendizado espiritual. Quando isso acontecia, os peregrinos se hospedavam na
única estalagem que havia no vilarejo, pertencente a um irmão mais jovem de
Tívan, que costumava apregoar, orgulhoso, que servia aos devotos e seus
mensageiros, embora eles sempre pousassem em sua espelunca muito rapidamente.
A veneração ao Único talvez fosse a característica mais representativa
que mantinha as pessoas de Lakar unidas, além da busca constante pela
manutenção de sua sobrevivência.
III.
Certa vez, porém, o sossego dos camponeses de Lakar foi afetado. Durante
uma de suas festividades anuais, em que os moradores estavam reunidos na praça
central, o povoado foi brutalmente atacado.
Um grupo de homens cruéis caiu sobre as pessoas de maneira inesperada.
Eles vieram de todos os lados e investiram com brutalidade contra os homens,
assassinando muitos deles. Tomaram à força algumas mulheres e as violentaram no
meio da praça. Colocaram fogo em algumas casas e destruíram os elementos
ritualísticos que o povo cultuava. As pessoas de Lakar, desesperadas, não
sabiam o que fazer e não tinham para onde correr, afinal os inimigos estavam em
todos os lugares.
Os invasores tinham os olhares desvairadamente satisfeitos com o sucesso
de sua empreitada. E a visão do sangue dos aldeões manchando as ruas do pequeno
povoado, bem como o som do choro das mulheres e crianças, que podia ser ouvido
a longa distância, parecia deixá-los em êxtase.
O terror se espalhara dentre os moradores de tal forma que levou algum
tempo até que Tívan, o único da região realmente capaz de fazer frente a um
ataque organizado, pudesse reunir alguns homens de armas e reagir.
Diante da reação do vilarejo, a brutalidade dos atacantes se intensificou
e o massacre mostrou-se inevitável. O grupo de atacantes era muito mais
organizado e forte do que os parcamente equipados camponeses, que lutavam com
armas rústicas e instrumentos de trabalho, contra as poderosas cimitarras e os
pesados bordões e escudos dos desafiantes.
Dessa forma, os inimigos derrotaram facilmente os camponeses que tiveram
coragem suficiente para seguir seu líder. E, assim, após perder vários de seus
homens em combate, Tívan nada pôde fazer a não ser se render.
IV.
Para a sorte, ou não, dos camponeses, aparentemente, os invasores
buscavam mais a rendição do vilarejo do que sua total destruição e pareceram se
satisfazer com a rendição das pessoas do povoado.
Assim, eles reuniram a todos, mandaram que parassem de chorar e se
lamuriar e impuseram as condições do acordo de rendição. As exigências para que
não exterminassem impiedosamente todos os lakarianos naquele momento eram
basicamente as seguintes. Todos, sem exceção, trabalhariam para eles e
forneceriam o que desejassem. E qualquer desvio a essa regra seria imediatamente
punido com a morte. Todo o produto do trabalho dos aldeões seria repassado a
eles, resguardado o estritamente necessário à sobrevivência do povo, sendo
vedada a acumulação de qualquer espécie.
Além disso, os saqueadores recolheriam regularmente, em Lakar, gêneros
alimentícios e armas, em quantidades previamente estipuladas por eles. Para o
cumprimento da primeira parte do acordo – que dizia respeito aos gêneros
alimentícios – chamaram Tívan para que ele explicasse o funcionamento do
sistema produtivo do vilarejo e o mandaram produzir o dobro do que conseguira
até então.
No que dizia respeito à produção de armas, chamaram logo o velho homem
Espartakus, como se já tivessem informações sobre ele. Forneceram-lhe uma boa
quantidade de matéria-prima e ordenaram que pusesse a família para trabalhar
depressa. Além disso, disseram que logo lhe levariam outros aldeões para que
trabalhassem sob suas ordens.
Assim, o velho ferreiro se veria novamente usando suas habilidades, há
tanto cultivadas, no fabrico de armas; desta vez para suprirem as necessidades
dos temíveis e desconhecidos invasores.
Tendo, então, explicitado suas regras de dominação, os invasores mandaram
que todos fossem trabalhar. Mas, primeiro, ordenaram que todas as virgens lhes
fossem apresentadas. Dentre elas, escolheram a que lhes pareceu mais bela. Era
a filha mais nova de Tívan, uma mocinha morena, quase uma menina, de cabelos
escuros, feições firmes e olhar esperto. A única, porém, dentre todas, que não
chorava. Pegaram-na e levaram-na a seu líder, um homenzarrão ruivo com uns
olhos escuros e profundos e a fala carregada por um sotaque estranho aos
habitantes de Lakar. Este havia tomado para si tudo de melhor que encontrara e
que, no geral, pertencia a Tívan, como a casa em que se abrigara. E para lá se
dirigiu na companhia da menina. E os outros não mais a viram desde que foi
entregue a ele.
V.
Nada restou ao povo de Lakar a não ser atender a todas as ordens dos
dominadores e, assim, mantiveram suas vidas da forma como foi possível.
Nos tempos que se seguiram, os camponeses passaram a trabalhar sob a mira
dos açoites dos invasores. A família de Espartakus passou a moldar o ferro não
somente à noite, mas também durante partes dos dias de sol. E outras pessoas
selecionadas pelos saqueadores foram postas sob as ordens do velho ferreiro e
aprendiam a contragosto o seu ofício.
De vez em quando, um mau trabalhador era sacrificado para servir de
exemplo e desencorajar a rebeldia entre os moradores de Lakar, o que tornava
sua vida cada vez mais desgostosa.
Já havia mais de um mês que o povoado se encontrava tal situação. Além
dos castigos que suportavam de seus dominadores, os lakarianos enfrentavam um
inverno rigoroso e uma colheita ruim. Em decorrência disso, começava a lhes
faltar provisões, pois os invasores haviam levado praticamente tudo que tinham
acumulado nas dispensas e os obrigavam a trabalhar ainda mais.
O filho mais novo do ferreiro, tremendamente incomodado com a situação
que enfrentavam, tornava-se cada dia mais inquieto e desgostoso, principalmente
ao observar o sofrimento do pai, que se fechara em si mesmo desde o dia do
ataque. Tudo que ele falava eram orientações quanto ao trabalho e nada mais.
Também de sua mãe já não via mais o sorriso, tampouco escutava os cantos doces
que ela costumava entoar enquanto cozinhava. Seus irmãos, cabisbaixos, padeciam
da mesma forma.
Certa feita, ao cair da tarde, após uma árdua jornada de trabalho que se
iniciara após o almoço, Espartakus observou a imagem do pai curvado sobre uma
grande pia, com os cabelos desgrenhados caindo-lhe pelos ombros, fazendo a água
borbulhar sob o contato da lâmina ardente de um pedaço rústico e pontudo que
viria a se tornar uma espada algum dia. Em meio à névoa que subia, o rapaz
notou uma lágrima se formando no canto do olho do pai e escorrendo por sua face
enrugada. Isso foi a gota d’água para ele.
VI.
No início daquela mesma noite, enquanto comiam e se preparavam para o
próximo turno de labuta, sendo a única melodia o ruído do metal espremido entre
o martelo e a bigorna, que ressoava em nota constante vindo da oficina,
Espartakus procurou o pai a fim de expor-lhe uma ideia.
Conseguiu que restassem sozinhos na sala e, olhando em volta receoso, com
muito custo conseguiu que o velho lhe desse atenção e relatou-lhe rapidamente o
que pretendia fazer.
Espartakus vinha observando, há algum tempo, os invasores e falou sobre
eles com o pai. Os sujeitos eram um pouco diferentes das pessoas de Impéria que
conheciam. Eram ruivos e de olhos escuros, também eram mais altos e corpulentos
e, ainda, falavam a Língua Comum de um modo estranho, utilizando uma pronúncia
que nem mesmo o velho ferreiro escutara antes.
O moço havia observado, também, outro detalhe. Pelo menos mais de um dos
invasores possuía uma estranha tatuagem nas costas, abaixo da nuca. Tratava-se
de um símbolo aparentemente abstrato, como uma fumaça ou um raio, que
possivelmente descia-lhes pela coluna. A menção àquela marca preocupou o pai de
Espartakus que, embora nunca tivesse visto algo parecido nem soubesse o que
significava, imaginava que não deveria ser algo bom.
Depois de envolver o pai com a narrativa de suas descobertas e ouvir o
que ele tinha a acrescentar a respeito dos cruéis dominadores, Espartakus
anunciou que pretendia fugir naquela noite. O pai, a princípio, assustou-se e
repudiou a ideia, porém, por fim, concordou resignado. Afinal, que futuro
poderia o filho esperar naquelas condições?
Quando conseguiu a aquiescência do pai, o filho anunciou que buscaria
ajuda no Templo do Único. Como não havia clérigos durante a última celebração,
na qual acontecera o ataque, o rapaz supunha que, talvez, eles ainda não
soubessem do acontecido e, por isso, não tivessem enviado socorro aos
desvalidos camponeses de Lakar. O pai concordou com a hipótese e achou uma boa
ideia recorrer ao Templo.
O velho ferreiro colocou seu melhor martelo nas mãos do filho e também
uma velha machadinha e mandou-o partir o mais rápido possível. O homem parecia
ainda mais abatido do que nunca, mas seu olhar não vacilava. O filho, por sua
vez, sentiu um peso enorme cair sobre si e, respirando fundo, abraçou o pai.
— Que o Único o favoreça e o segredo o proteja... — ele sussurrou em seu
ouvido.
O velho voltou para a oficina enquanto Espartakus reuniu o que pôde na
dispensa. Com o coração pesado por prejudicar o sustento dos seus, levando o
parco alimento que possuíam, o rapaz escapuliu algum tempo depois de Lakar.
Continua...
Oi Élida. Achei bem interessante esta primeira parte. A narrativa é bem simple e bem envolvente. Já temos um herói com um grande nome em roupagens novas.
ResponderExcluirOlá! Obrigada pela leitura e por ter me dedicado seu tempo. :) Sim, o nome remete a um grande personagem... Volte na semana que vem e venha conferir outra parte da história!
ExcluirQuerida Élida! Adorei o primeiro capítulo! Estou ansiosa para os próximos!
ResponderExcluirOlá, querida Cláudia! Obrigada pela leitura e por ter me dedicado seu tempo. :) Que bom que gostou. Fico muito feliz. Volte na semana que vem!
ExcluirSerá que Espartakus vai conseguir chegar ao Templo ?!
ResponderExcluir...
aguardando os próximos capítulos! :)
Eu também Anderson Valeriano! Não vejo a hora!!!
ExcluirUhm... Será que ele chegará?! Voltem aqui na semana que vem e vocês verão uma nova parte da história! Espero vocês. Obrigada pela leitura e por terem me dedicado seu tempo. :)
ExcluirEstou contando com isso! Contagem regressiva...
Excluir:)
ExcluirParabéns pelo conto!
ResponderExcluirOlá! Obrigada pela leitura e por ter me dedicado seu tempo. :) Volte em breve para conferir a continuação!
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