A carta
"A carta" é um conto de minha autoria que foi publicado pela Editora LiteraCidade em 2014. Tenho um carinho particular por esse texto, pois foi ganhador de uma Menção Honrosa em um concurso de contos organizado pela editora que o publicou. Segue a referência do livro onde ele pode ser encontrado:
A carta. Prêmio LiteraCidade 2014-Jovem: Contos. 1ed. Belém: Literacidade, 2014, v. 1, p. 30-32.
O livro é vendido no site da editora no link: https://www.literabooks.com.br/plc2014-jovem-contos)
Esta história não apresenta relação com o mundo de Arcaries, mas aproveite a leitura enquanto aguarda por mais novidades dessa terra misteriosa.
A carta. Prêmio LiteraCidade 2014-Jovem: Contos. 1ed. Belém: Literacidade, 2014, v. 1, p. 30-32.
O livro é vendido no site da editora no link: https://www.literabooks.com.br/plc2014-jovem-contos)
Esta história não apresenta relação com o mundo de Arcaries, mas aproveite a leitura enquanto aguarda por mais novidades dessa terra misteriosa.
A carta
Na cadeira forrada por
retalhos de pano cortados em tirinhas coloridas, costuradas caprichosamente por
mãos habilidosas em um pano branco que escondia os carcomidos do estofado do
assento, estava um corpo jovem de moça, encolhido junto à mesinha de madeira.
Um dos braços estirado, inerte, na beira da mesa e o outro largado no colo; os
olhos embaçados fitando vagamente este último.
Apesar de brancas e
limpas, as paredes tão próximas a sufocavam. A atmosfera do antigo quartinho de
costura dos fundos, agora transformado num cantinho só seu, era angustiante. O
basculante, lá no alto, trazia pouca luz e não deixava entrar uma brisa sequer
para amenizar o intenso calor daquela tarde. A cortina de vapor que emanava do
telhado de amianto, tão próximo, era quase palpável. Ali, felizmente, não
precisava ouvir o barulho da rua, e o ruído dos vizinhos era distante para se
distinguir qualquer coisa. Com a porta fechada, mal podia ouvir também o que se
passava em casa, apenas o motor da máquina de lavar funcionando na área de
serviços ao lado, sinal de que a vida prosseguia. Aquele era seu recanto, o
único onde podia ficar escondida do mundo, o único onde podia ficar. Lembrar-se
disso, em outras épocas – remotas? – lhe trouxera algum conforto.
O corpo desanimado e enrijecido
se voltou ocasionalmente para olhar os livros que se distribuíam organizados
pelas prateleiras pregadas na parede. Ocorreu-lhe a lembrança da barulheira que
provocara a confecção daquela “estante” e de seu pai manuseando habilidosamente
a furadeira, xingando a cada pequeno detalhe fora do lugar; um trabalho não tão
complicado, mas que exigira força e precisão a cada furo. Tudo para
conceder-lhe o gosto de ter aqueles livros ali. Em seu rosto, o esgar que
transparecia agora, há muito apagara a antiga marca de seu doce sorriso.
Piscou para tentar
enxergar melhor. Seus olhos passaram pelo computador em cima da mesa. Na tela,
o arquivo ainda aberto de um texto não terminado, linhas desassossegadas do seu
desassossego. Ao lado, um estojo de lápis e, fora dele, duas canetas e uma
lapiseira, cuidadosamente postas lado a lado. Um amontoado de papéis de
rascunho, recentemente revirados, ocupando um canto da mesa. Um copo de água do
dia anterior. Seus olhos girando por aquelas coisas antes tão preciosas...
Como pudera um dia ter
achado aquela cadeira confortável e aquele recanto, aconchegante?
Voltou-se, sem querer,
para a lixeira tombada ao lado da mesa, observando que pequena era a bagunça
que sua queda provocara, quase tão insignificante quanto sua própria existência.
Ao lado do pé da mesa, que detivera o movimento da lixeira, estava ainda aquele
pedaço de papel que, embora a jovem relutasse em fitar, havia entrado
impiedosamente em seu campo de visão. Tinha consciência de que ele caíra por
ali, apesar de não ter acompanhado seu movimento completo à meia luz da noite
anterior, quando o soltara de suas mãos. Para reconhecê-lo, não precisava ter
visto o calendário do mês de agosto em seu verso. Não precisava ter se abaixado
– tanto esforço! – para pegá-lo, nem contemplado a caligrafia apressada e os
borrões rabiscados, vãs tentativas de modificar essências por meio de
aparências. Apesar de trabalho tão árduo, deviam inventar um jeito de se fazer
da vida o que se fazia das palavras no papel. Já percebera que, no mundo, tudo
era irreparável, inapagável, imodificável. Grande acúmulo de inconsistências.
No papel, as coisas tinham outro aspecto...
Os olhos percorreram
lentamente as linhas borradas, os lábios movendo-se em sussurros molhados de
fel. Agulhas picavam sua pele a cada ponto final. As vírgulas não lhe permitiam
tomar fôlego, disparavam uma enxurrada de tormentos. Não havia exclamações. As
perguntas, por sua vez, eram muitas. Só havia perguntas? A poética de sua vida
ali desmascarada.
Contorcia-se com as ferroadas
agudas de seus sentimentos, tão mal expostos nas linhas amargas de sua alma,
espalhada bruscamente por um pedaço de papel insignificante que não demoraria a
se juntar aos rejeitos na pequena lixeira. O que teria ganhado cumprindo suas
promessas? Desistir seria mesmo uma forma de se vingar? Poderia rir do mundo
quando tudo estivesse consumado?
Disso não saberia, pois
parara o ato, interrompera o golpe que findaria o giro do mundo. Por instantes
caminhara na mais tênue linha que já traçara. Entre o desejo e a coragem, a
existência por um fio. Tão cruel o medo que sentira... E ali permanecera como a
rocha, a menos lapidada, a mais desprezada...
Mas riria. Riria
profundamente de seus tormentos. Olharia com escárnio para os que a mediram com
malícia. Zombaria do fel derramado e do veneno de sua boca e esperaria
pacientemente o golpe final...
Num gesto lento, ergueu a
mão e depositou a folha de calendário no bolo dos rascunhos.
Fim.
Mais um belo conto. Parabéns!
ResponderExcluirQue bom que gostou! Obrigada. Continue por aqui :)
Excluircontinuarei sempre :)
ExcluirValeu a pena esperar por mais um belo conto...
ResponderExcluirVocê vai longe...com seu talento...parabéns!
Obrigada, Anderson! Sua atenção e leitura sempre me incentivando... Abraço!
ExcluirFiquei sabendo que hoje é o aniversário de uma certa escritora muito talentosa. Parabéns pela data e pelo blog!
ResponderExcluirNossa! Que linda lembrança! Obrigada pelo carinho especial :) Sua leitura deixa meu mundo ainda mais feliz. Abração.
ExcluirEste conto nos permite vivenciar, num átimo, um turbilhão de lembranças, sensações e a presença de uma pessoa que invadem os pensamentos da protagonista ao longo da leitura dos rascunhos que preparava, dos ensaios de afinação da letra e das leituras vezes sem conta antes de concluir a composição final da sua carta. O processo de elaboração de uma correspondência não só faz com que o remetente ocupe o seu pensamento exclusivamente com uma pessoa, mas também permite que consiga estar a sós, verdadeiramente sós com destinatário. A escolha do foco narrativo contribuiu bastante para o efeito interessante de ativar e estimular a imaginação que o conto quer provocar no leitor. “As perguntas, por sua vez, eram muitas. Só havia perguntas?” – nesse ponto o leitor pode se identificar com esse trecho do texto, ao imaginar e questionar: Para quem a mensagem foi dirigida? Promessas? Vingança? A carta seria concluída algum dia? A correspondência chegaria às mãos do destinatário? Ao término da leitura ficou aquele "gostinho de quero mais!". Enfim... parabéns pelo seu conto, espero que continue com outros tão interessantes quanto!
ResponderExcluirObrigada pela leitura e pela análise, Carlos Eduardo! :)
ExcluirÉ legal saber que o leitor tem a imaginação estimulada por esse conto e se identifica com o texto em alguns momentos!
Continue por aqui para se surpreender ainda mais! ;)
Abraço, Élida