A maldição de Arbon. Parte 16
XIX.
Passando pelo pomar, fizeram, silenciosos, o caminho rumo ao mosteiro. A
madrugada fria ia chegando ao fim quando pararam diante do grande portão de
ferro que encerrava a muralha circular. Ari se adiantou e, tocando a aldrava,
mostrou o próprio rosto diante de uma pequena janela que se abria no portão à
meia altura.
— Abra. — disse simplesmente quando um guarda abriu a boca confuso para
interpelá-lo.
O portão rangeu e Ari passou pela abertura. O guarda encarou também a
criança com estranheza e fez menção de barrar os demais, mas, a um olhar do
sacerdote, ele liberou o caminho.
— Devemos avisar o sacerdote-chefe? — perguntou o sujeito inseguro.
— Eu mesmo o farei. — respondeu Ari e foi andando.
Cruzaram um pátio e os jardins. Por ali havia algumas estátuas que
representavam os Kamms da mesma forma que no templo. Macus identificou algumas
que já vira antes, outras lhe pareciam inéditas. Não era a estação das flores e
o jardim tinha apenas folhagens, todas bem cuidadas. O pátio já fora varrido e
tudo parecia em ordem.
O menino Kim passou pelo grupo de recém-chegados e cumprimentou-os. Ele
carregava uma pesada talha com água a qual depositou momentaneamente no solo
para descansar. Enquanto isso observou em silêncio a passagem da comitiva. Viu
que um guarda do portão os seguia de longe e preocupou-se. Quis chamar Lissa,
mas se conteve. A menina tinha um olhar com o qual ele nunca a vira antes.
O sacerdote conduziu os elfos e a criança para uma sala de estudos. Era
um cômodo amplo com poltronas acolchoadas circundando mesas redondas. Pelos
cantos, havia algumas banquetas e, ao fundo, um tablado sobre o qual se elevava
um púlpito. As cortinas das janelas estavam fechadas e os castiçais, apagados.
Naquele horário, não havia ninguém na sala.
Ari pediu aos três que descansassem e disse que traria o sacerdote-chefe
em momento oportuno. Pouco depois de sua partida, o menino Kim surgiu no local.
Ele vinha destrambelhado trazendo várias coisas. Tratava-se de alguns
vasilhames. Dentre eles havia uma jarra com leite e uma cesta de pães, além de
uma tigela com ovos de codorna cozidos e uns pedaços de queijo. Hesitante, ele
pediu licença e depositou tudo diante da mesa onde Lissa se sentara junto dos
elfos.
— Você parece faminta. Coma. — disse Kim à outra criança. E logo foi
enchendo uma caneca com leite e oferecendo a ela. Lissa o olhava como se ele
fizesse parte de um passado distante. O garotinho ofereceu comida também aos
elfos e serviu-lhes, mas ninguém parecia disposto a comer. Eles apenas beliscaram
alguma coisa e Lissa apenas tomou uns goles de leite.
— Você tem um plano? — Macus perguntou à menina de repente.
— Plano?! — ela se assustou — Eu devo dizer a verdade a ele...
— E se ele não acreditar em você?
O olhar da menina era uma longa reticência. Então Macus se voltou para
Kim:
— Como você descreveria o sacerdote-chefe?
— Bem... — ele pensou um pouco — É um homem rigoroso, obediente às
tradições e mantenedor da ordem...
— E você acha que ele estaria disposto a perdoar sua amiga por não ter
servido como sacrifício na praia?
O menino o olhou como se tudo que ouvisse fosse algo novo.
— O senhor Nélius nunca deixou de punir-nos por uma brincadeira sequer,
por mais insignificante que fosse... E sempre nos ensinou que os sacrifícios
salvavam o povo de Arbon da perdição completa... Não acredito que ele perdoaria...
Mas, se esta é a vontade dos Kamms, então não poderá deixar de atendê-la. É um
homem sábio...
Macus olhou para Irkan e dele para Lissa.
— Não sei o que devo fazer. — a meio-elfo desabafou desconsolada. — Tenho
medo.
— Então vamos pensar. Está bem? — disse Macus e então se voltou para Kim
— Por favor, você poderia vigiar a porta e nos avisar caso alguém se aproxime?
— Sim. — disse o garoto e se levantou de pronto, atendendo ao pedido do
outro.
— Acredito que você deva se desculpar, mas não pode contar apenas com
isso, precisa de algo mais. O fantasma, digo, a Última Criança, aparentemente
lhe oferece algum tipo de proteção. Você acha que ela enfrentaria o
sacerdote-chefe por você?
— Sempre disseram que ele é um homem poderoso e todos sempre tiveram medo
dele. Não houve uma criança sequer que, quando apanhada por ele, não tenha se
comportado muito bem depois disso. Alguns dizem que não são apenas os Kamms que
o protegem... Nunca vi ninguém que ousasse desafiá-lo. Aliás, não sei o que o
sacerdote Ari poderia fazer contra ele... Já o fantasma talvez...
Macus estava pensativo e Irkan o observava atentamente.
— Eu tenho uma ideia para você. — tornou Macus — Todavia se trata de algo
perigoso. — ele parou refletindo — Acha que conseguiríamos chamar o fantasma?
— Macus, — cortou Irkan — em que está pensando?
O elfo mais jovem se voltou para o companheiro e pôs-se a explicar:
— Algumas pessoas já morreram em Arbon e todos estão assustados com
isso... Dessa forma, a maioria dos moradores pensa que o melhor a se fazer para
conter a ira dos Kamms é oferecer crianças em sacrifício, porém os sacrifícios
incomodam a Última Criança, que segue matando sacerdotes e pessoas comuns a fim
de pará-los... Acredito que este seja um ciclo que deva ser rompido, do
contrário esse vilarejo viverá uma grande tragédia. Talvez o caso aqui não seja
a ira dos Kamms, mas a da Criança. Talvez os Kamms nunca tenham se incomodado
com os sacrifícios... Por outro lado vemos que o desejo das crianças de servir
como oferenda não é tão real quanto pensávamos...
Lissa o olhava pensativa:
— Então você acha que vimos agindo errado todo esse tempo? Não acredita
realmente que os Kamms existam ou que se importem conosco, não é mesmo?
— Você começa a duvidar, Lissa? — disse Macus perspicaz.
— Macus! — Irkan interrompeu novamente. — Eu já lhe expliquei quanto a
interferências... Se este é o seu ponto...
— Não estou pensando em crenças nesse momento, Irkan, mas em vidas! —
Macus cortou — Permita-me agir!
O experiente elfo pensou um pouco, depois disse:
— Continue explicando seu plano.
— Minha ideia é, com a ajuda do fantasma, testar a fé do sacerdote
chamado Nélius. E, com isso, dar fim a esse ciclo de sacrifícios. E também
parar os assassinatos causados pelo fantasma. Isso é permitido?
Antes que o outro falasse, a meio-elfa interrompeu:
— Mas ele é um homem de muita fé e todos sabem disso.
— Ótimo. — disse Macus com um sorriso. — Então apenas terá de provar. Vou
explicar-lhes melhor e vocês poderão concordar ou não... Mas, sem a colaboração
do fantasma, acredito que será muito difícil... Primeiro, — disse o elfo depois
de pensar um pouco — Preciso saber como o fantasma se comunicou da última vez.
Ele não usou palavras, correto?
— Não... — Lissa respondeu — Eu simplesmente escutei sua voz em minha
cabeça. Mas não havia som algum.
— E como você respondia?
— Apenas pensando.
— Ótimo. — Macus continuou. — E acha que é possível chamá-lo? Quero fazer
um acordo...
— Eles estão vindo! — disse Kim de repente entrando correndo para dentro
do cômodo.
Irkan encarou Macus preocupado e falou ao companheiro:
— Ainda não sei bem o que pretende, mas advirto que tome cuidado e seja
prudente. Agora isso está em suas mãos, Macus. — voltou-se então para a
meio-elfa — Lissa, tenha em mente que não sabemos se podemos confiar em Ari. E
tenha cuidado com o que dirá ao sacerdote-chefe. Nós estamos aqui para
ajudá-la.
Continua...
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