A maldição de Arbon. Parte 5


VIII.
Macus, Irkan e a meio-elfa se sentaram ao redor do fogo ao abrigo das árvores da Floresta das Feras na porção norte do vilarejo de Arbon. Por ali havia poucas casas e a maioria delas ainda mantinha as luzes apagadas, embora já se iniciassem as primeiras horas daquele dia. Grilos cricrilavam ao redor, e vaga-lumes pintavam o espaço com seus faroizinhos luminosos, os quais atraíam a atenção da menina. Tanto ela quanto Macus estavam enregelados e tremiam e o aconchego da fogueira foi para eles grande alento.
Irkan preparou uma infusão de ervas e deu-lhes de beber. Quando ambos se sentiam restabelecidos, Macus se dirigiu à menina.
Gostaria de saber o seu nome, pequena guerreira. — falou ele em élfico.
Sou Lissa. ­— respondeu ela na mesma língua e com boa disposição. Seu olhar se transformara, deixando a sombra do medo, e ela o encarava com sagacidade.
Muito prazer, Lissa. Eu sou Macus e meu companheiro é Irkan.
Vocês não são daqui. — disse ela.
Tem razão, somos de Kaffa. — falou Irkan.
Então não foram enviados pelos sacerdotes do templo... — tornou Lissa.
Não... — falou Macus. — E por que estava na praia, Lissa? Não deveria ter ido embora?
Quando todos correram, eu me assustei, mas estava ali para cumprir o meu dever. — ela respondeu convicta. — Não posso voltar para casa.
Por que não? Onde é sua casa? — perguntou Macus.
Eu tinha morada no templo dos Kamms, no mosteiro, mas é apenas provisório. Meu lugar é junto dos Kamms e logo vou encontrá-los. Meu tempo se cumpriu.
Macus a fitava inquieto. Muito o incomodava sua convicção e, mais ainda, sua tranquilidade.
Sabe o que iria acontecer na praia se o sacerdote não tivesse sido... interrompido? — o jovem elfo insistiu.
Você quer dizer caso o fantasma não tivesse aparecido. — tornou Lissa serena — Eu teria sido acorrentada à cruz, o sacerdote faria uma prece oferecendo meu sacrifício aos Kamms. Eles esperariam a subida da maré e, então, um encarregado do sacerdote atiraria uma flecha certeira em meu coração. No dia seguinte, caso meu corpo fosse encontrado preso às correntes, tenho certeza de que não o seria, isso representaria um sinal de que os Kamms teriam rejeitado meu sacrifício. Tendo-o aceito, meu corpo não seria encontrado. E não seriam necessários novos sacrifícios para acalmar o desgosto dos Kamms.
Macus, procurando a calma diante da serenidade da outra, inquiriu:
Por que tem tanta certeza disso?
Porque estou obviamente preparada e aceitei minha tarefa, a qual foi designada a mim desde meu nascimento.
Macus abriu a boca, mas a fechou em seguida. Olhou para Irkan, que o encarava curioso, refletiu um pouco e então tornou a falar:
 E como foi que essa tarefa foi designada a você?
Fui escolhida pelos Kamms.
Como exatamente você foi escolhida?
Vejo que estou diante de um incrédulo.
Irkan levantou a sobrancelha olhando de Lissa para Macus. O elfo mais velho também estava admirado com a desenvoltura da criança.
Conte-nos mais sobre seu preparo. — disse Irkan — Deve ter estudado toda a vida... Chegou a conhecer seus pais?
Meus pais verdadeiros são os filhos dos Kamms, escolhidos por eles muitas eras atrás, mas os sacerdotes me criaram com dedicação. O casal que me deu a vida material em Arbon recebeu a visita dos sacerdotes logo que completei seis meses nessa existência. Eles informaram o desejo dos Kamms e o casal o recebeu com júbilo. Isso os livrou de duras penas, pois são pobres e pouco têm para seu próprio sustento, embora os Kamms olhem para eles com misericórdia. Estou certa de que, até hoje, eles fazem suas preces dedicadas por mim e eu retribuirei quando me juntar aos Kamms olhando por eles com amor.
Venho estudando desde que completei a idade adequada. Aliás, aprendi a ler precocemente sem que me houvessem ensinado. No mosteiro, estudamos sobre a história das eras do mundo. Nossos mentores dizem que é necessário conhecer a história do passado para compreender o presente. Conhecemos as criações dos Kamms e fazemos nossas preces, rituais e sacrifícios diariamente. Não nos são permitidos jogos e brincadeiras, afinal nosso dever é o conhecimento. É uma vida reclusa, silenciosa, mas feliz. Também estudamos outros cultos que existem em Arcaires e seus fundamentos. Escolhemos nossa fé e fazemos nossos votos perpétuos apenas após termos consciência de tudo que existe. Mas ninguém ousaria recusar uma honra tão grande feita pelos Kamms. Ser um eleito é uma dádiva.
Macus balançou a cabeça e remexeu-se em seu lugar. Lissa o observou atentamente. O jovem elfo encarou Irkan, que estava pensativo, e baixou a cabeça. Enquanto analisava silenciosamente o que ouvira, sentiu o tempo esfriar e levantou-se para mexer na fogueira. Ouviu um ruído e voltou-se em direção à Lissa. Tinha ainda em mãos o pedaço de pau que usara para revirar a brasa. Ao fazer isso, um vento forte soprou de repente e atirou o jovem elfo contra uma árvore ao longe.


Continua...

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