Relíquia

"Relíquia" é um conto de minha autoria que foi publicado pela Editora LiteraCidade em 2014. Tenho um carinho particular por esse texto, pois foi ganhador do primeiro lugar em um concurso de contos organizado pela editora que o publicou. Segue a referência do livro onde ele pode ser encontrado:

Relíquia. Prêmio LiteraCidade 2014-Jovem: Contos. 1ed.Belém: Literacidade, 2014, v. 1, p. 7-9.
O livro é vendido no site da editora no link: https://www.literabooks.com.br/plc2014-jovem-contos)

O conto também pode ser encontrado no blog da Editora LiteraCidade nos links:



https://premioliteracidade.wordpress.com/2014/02/19/reliquia-elida-ferreira-martins/

Esta história não apresenta relação com o mundo de Arcaries, mas aproveite a leitura enquanto aguarda por mais novidades dessa terra misteriosa.


Relíquia


Por um passeio ladrilhado ela caminhava, observando atentamente os desenhos abstratos salpicados de pontinhos coloridos. O calçamento era de paralelepípedos, já não tão bem encaixados como deveria ter sido antigamente. Carros transitavam em baixa velocidade desviando das irregularidades do chão e disputando espaço com os pedestres. Faixas de boas vindas atravessavam a alameda. As casinhas de estilo rústico abriam suas portas e janelas lado a lado, sorrindo para seus convidados. As fachadas amplas abrigavam lanternas, balões e fitas coloridas. Muitas flores artesanais se dispunham em jarros de barro ao lado dos portais, com ramos de trigo falso compondo os arranjos. Namoradeiras em uma ou outra sacada mandavam seu olhar alegre. Pelos vãos, era fácil ver os móveis antigos dentro das casinhas, como se saídos de um museu. Ela notou uma máquina de escrever no que parecia ser a reprodução de um escritório. Não pôde deixar de se aproximar. Lá dentro, notou duas estantes cheias de livros ao lado de uma mesinha onde estava a máquina de escrever e junto da qual estava uma cadeira de palhinha. Numa outra casa, avistou a reprodução de uma antiga venda. Atrás de um balcão, um senhor gordo com um avental branco segurava uma colher erguida para o alto. Nas prateleiras, muitas compotas e conservas, além de tachos, caldeirões e vasilhames de cobre e barro. No balcão, além de produtos em exposição e embrulhos de papel pardo, havia uma balança com pesos de tamanhos variados em um de seus pratos.
Ela subia uma ladeira onde havia uma igreja barroca e ia se lembrando da última vez que estivera na cidade. Fora sua primeira viagem ao lado dele. Lembrava-se de como era difícil caminhar ao seu lado, prestando atenção nele e no caminho, evitando os costumeiros tropeções. Lembrava-se de como se comportara seu coração, mais cheio de solavancos do que o propiciado pela travessia daquelas ladeiras esburacadas. O brilho das lâmpadas e os muitos tons dos enfeites que se alternavam não eram nada se comparados ao carnaval que seus sentimentos aprontaram. Irregulares, crepitantes, destoantes eram seus pensamentos, equiparando-se a uma marcha desentoada de uma orquestra mal ensaiada.
Avistou um café do qual guardava boas lembranças do ano anterior. Seguiu vagarosamente em sua direção, curtindo suas memórias. Lá ele lhe dirigira a palavra numa voz suave. Haviam se acomodado em pufes e ele ficara bem juntinho... Desta vez, ela preferiu uma mesa pequena, as coisas agora eram diferentes... Pediu um cappuccino com canela e uma tortinha salgada. Quando o garçom serviu o lanche, espalhou-se um cheirinho quente e saboroso. Ela observou as outras mesinhas enquanto procurava prolongar aquela sensação agradável. Algumas moças conversavam educadamente, observando a rua pela vidraça.
Um cheiro de café moído na hora perfumava o ambiente, e o marrom da mobília e do interior das paredes, aliado ao preto e branco dos pufes, o compunham com harmonia. Ela fitava o balcão de vidro dos doces e salgados, que pareciam apetitosos. Junto deles se intercalavam ramas de café, com seus cachos vermelhos e maduros, que também decoravam as paredes.
Acaso estaria sentindo também um aroma familiar, aquela fragrância suave que emanava dele? A sensação a despertou para um amplo quadro de fotos numa parede aos fundos. Enquanto saboreava, aos golinhos, a bebida amarga adocicada, deixou seus olhos se moverem aleatoriamente por lá, de muito longe, porém, para distinguir as gravuras. Cada garfada de torta que levava à boca aumentava a curiosidade, que continha, receosa.
Terminado, finalmente, o lanche dirigiu-se ao quadro, levando consigo a comanda. Notou que havia algumas datas e foi logo nas do ano anterior. Reconheceu uma cena, mal conseguindo se conter, o peito palpitante. Então eles haviam cumprido mesmo a promessa! Promessa de que já nem se lembrava mais, mas que acabara de lhe ocorrer: “manter vivas as memórias da casa”, dissera o fotógrafo. E de fato conseguira registrar o seu momento! Captara a intensidade do olhar de seu amado, fixara para a eternidade o toque suave da mão dele sobre a dela, os olhos miúdos brilhando como uma joia incandescente. Uma exclamação escapou-lhe. Não podia deixar aquilo ali. Um breve olhar em torno desencorajou-a, mas não desistiu; levou sua pequena mão trêmula à foto e arrancou-a de seu arranjo, deixando evidente o vão de que saíra. Meteu-a no bolso apressada e foi ao balcão pagar a conta.
O funcionário a encarou dubitativo, deu-lhe o troco fitando seu rosto culpado. Desconsertada, ela sustentou o olhar, hesitando por um instante. Embora agitada, conseguiu rumar para a porta, a mão já enfiada no bolso, afagando a pequena relíquia. Mal podia esperar para ganhar a rua e poder contemplá-la mais uma vez.

Fim.

Comentários

  1. Mais um belíssimo conto daquela que já se tornou a minha autora favorita!

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    1. Eba! Já se tornou meu leitor favorito! Obrigada pelo carinho. :) espero que continue gostando. Ainda virá muita coisa por aí.

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  2. são tantos os detalhes que ...visualizei ...presenciei o momento exato que ela retirou a relíquia do quadro.


    mais uma vez...parabéns !

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    1. Obrigada, Anderson! Fico muito feliz que esteja gostando. Você tem contribuído bastante com o trabalho por aqui. Sempre incentivando... Mais uma vez obrigada. :)

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  3. A leitura é agradável. Não fica oculto em nenhum momento o imenso talento da autora. Ela narra com maestria, descreve uma típica cidade de interior (ruas estreitas, piso de paralelepípedo, casinhas de estilo rústico, igreja barroca) e as dificuldades da protagonista ao executar uma "pequena travessura" para obter a sua relíquia. Estive a ver o teu blog, tens trabalhos fantásticos. Parabéns!

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    1. Obrigada, Carlos Eduardo! ;)
      Esse continho me deu muitas alegrias... Que bom que gostou!
      Abraço, Élida.

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