Pactos. Entre justos e pecadores. Parte 5

XXI.
Quando Aiorius e Espartakus deixaram o Templo do Único, dois dias depois, o jovem homem não ouvia, nem falava, nem enxergava. Conforme sentenciado, ele fora envolvido pela magia de Dúkar, uma névoa densa e brilhante, que lentamente retirara seus sentidos um a um.
A sacerdotisa nada fizera para impedir seu castigo, tampouco o clérigo Aiorius, de Teles. E todos os demais membros do Conselho assistiram ao seu tormento sem nada dizer. Espartakus também nada disse; não se lamentou nem resistiu. Escolheu confiar na palavra do clérigo de Teles, que agora descia as montanhas com ele rumo a Lakar. E embora não pudesse vê-lo ou ouvi-lo, ele sentia-o e algo em seu íntimo lhe assegurava de que ainda estaria com ele por algum tempo.
Para surpresa de Aiorius, três dias depois, um guerreiro utilizando uma armadura aproximou-se deles. O sujeito vestia uma cota de malha que lhe cobria até os punhos e caía abaixo da cintura. Usava um elmo metálico que lhe tampava todo o rosto. Uma calça de couro grosso cobria suas pernas. Ele usava ainda luvas e botas e se envolvia em uma longa e ampla capa negra. Movia-se silenciosamente e o clérigo só o notou quando ele estava perto. Aiorius, então, esperou que ele se aproximasse mais e manteve-se segurando o cabo da espada que levava às costas.
Mas, ao se acercar, aumentando a surpresa do clérigo, o guerreiro falou e sua voz era fina e cristalina:
— Vou acompanhá-los. — o som ecoou de dentro da armadura. Era uma mulher. E a mulher era Kara.
Aiorius recebeu a notícia, a princípio, com satisfação, mas em seguida preocupou-se. Tentou argumentar com ela, dizendo-lhe que o certo seria voltar, pois poderia ter problemas caso soubessem o que ela estava fazendo. Os dois debateram longamente, mas Kara estava irredutível. De trás de sua máscara, ela fitava Espartakus penalizada, mas o rapaz sequer dera por sua presença. O filho do ferreiro imaginava que estavam apenas descansando. E não havia como lhe explicar o que estava acontecendo.
Ao fim, Aiorius perdeu a discussão e deixou a sacerdotisa seguir no caminho que escolhera. Em realidade, a companhia dela muito o alegrava. Era bom ter alguém com quem pudesse contar, além de Espartakus. E ela, de fato, ajudou bastante na descida da Cordilheira.
A princípio, quando ela começou a ajudar Espartakus, o moço estranhou o fato de ter mais uma mão para segurar, além da de Aiorius, quando o terreno se mostrava muito difícil. E embora não pudesse compreender essa mudança, ela aqueceu o seu espírito e abrandou seu desespero. Sentia, quando ela o tocava, a mesma sensação de calma que o invadira ao ser sentenciado durante o julgamento do Conselho. E isso o deixava estranhamente seguro, apesar de tudo.
XXII.
E, assim, devido às limitações e dificuldades de locomoção do filho do ferreiro, aproximaram-se do povoado apenas dezessete dias após terem partido do Templo, já decorridos quase três meses desde o ataque. E ali encontraram um cenário um pouco mais sombrio do que o que o rapaz deixara para trás, porém não tão sombrio quanto Kara e Aiorius poderiam esperar.
A vigilância intensificara-se e havia muitos homens do bando dos saqueadores no povoado realizando a coleta. Os aldeões trabalhavam apressados enquanto os invasores estavam à paisana, exibindo chicotes grossos e gritando palavras de comando. Naquela noite, havia carroças sendo abastecidas com suprimentos e armas e sendo preparadas para viagem. Mulas e cavalos haviam sido trazidos para perto das carroças e estavam presos em gradis de madeira. Alguns homens preparavam-lhes cabrestos, outros corriam para trazer algum material que ficara para trás.
O clérigo e a sacerdotisa aproximaram-se cautelosamente do local onde havia a maior aglomeração de pessoas. Posicionaram-se nas sombras e dali observaram a situação do vilarejo por um bom tempo. Com base em descrições detalhadas de Lakar e de seus habitantes, que Espartakus fornecera quando ainda estavam no Templo, tentaram detectar o líder dos ruivos e os parentes de Espartakus. Não localizaram os parentes de Espartakus, porém Aiorius enxergou o sujeito que deveria ser o líder do grupo, exatamente como o rapaz dissera.
Enquanto observavam, Aiorius e Kara trocaram, aos sussurros, diversas impressões quanto aos invasores. Aiorius julgava que eles haviam sido bem descritos por Espartakus. Além de tudo, ostentavam uma postura superior e olhares cruéis. Não se pareciam, realmente, com os homens de Impéria. Lembravam vagamente a Aiorius as características dos habitantes de Ílios. Esse conjunto de fatores, aliado ao que pôde ouvir de suas vozes longínquas, fez o clérigo acreditar tratar-se, de fato, de uma invasão da Ordem do Culto da Sombra. Mas apenas isso não o ajudava a adivinhar seus objetivos.
O clérigo e a sacerdotisa perceberam que a maioria dos cultuadores da Sombra guardava as carroças e pouco trabalhava. Eles apenas supervisionavam o trabalho dos demais e estavam bem municiados de armas. No geral, pareciam gostar de dar ordens e castigar os escravos.
XXIII.
Ocorrera a Aiorius, de antemão, além de se infiltrar e obter informações, a ideia de seguir os cultuadores da Sombra até seu destino e investigar seus propósitos. E com essa intenção viera do Templo. Porém, após observá-los, refletiu e discutiu a questão com Kara. Ambos concordaram que, além de se tratar de uma empreitada muito arriscada devido à quantidade de inimigos e à incógnita quanto ao que poderiam encontrar, deveriam priorizar o compromisso assumido com Espartakus e procurar um meio de cumpri-lo.
Enquanto consideravam tais questões, o clérigo pôs-se a pensar também no melhor modo de não deixar que aquele carregamento seguisse seu trajeto e, ainda, em uma forma de poder capturar e interrogar a maior quantidade possível de inimigos.
Aiorius, no entanto, não queria agir antes de conversar com camponeses ou até com o velho ferreiro, pai de Espartakus, que poderiam lhe dizer mais coisas sobre a atual situação do vilarejo. Ele gostaria de poder saber a quantidade de invasores e a frequência de aparição de outros inimigos além dos que se instalaram outrora no povoado, aventando a possibilidade de haver algum acampamento na região. Aiorius considerava quão arriscada poderia ser a investida contra eles.
Kara alertava quanto às dificuldades de enfrentar todos aqueles homens e à necessidade de saber se poderiam contar, ou não, com os camponeses no caso de uma batalha. E se, pelo menos, eles seriam capazes de fugir, em caso de necessidade.
Uma situação, porém, veio a tirar Aiorius e Kara de suas divagações.
XXIV.
Uma grande confusão se iniciara porque um camponês se recusara a carregar um fardo muito pesado que lhe fora designado. Ele levou algumas chicotadas e esbravejou com um capataz. Ferido e humilhado, foi obrigado a sustentar o peso, e proibiram que outros viessem ajudá-lo. Ele tentou, em um esforço sobre-humano, cumprir o que lhe mandaram, mas tombou ao chão.
A essa altura, muitos haviam parado para ver o que se passava. Mas os da Ordem pareciam ter pressa e a balbúrdia os incomodava, então o líder deles veio para junto do grupo pisando duro. Gritou um comando rude com um sotaque acentuado ao camponês. Este, sem êxito, lançou mão de suas últimas forças e, em seguida, sentiu uma lâmina fria atravessar-lhe o dorso.
Ouviram-se muitos gritos de terror e de ódio e também algumas risadas malignas. Os homens da Ordem puseram-se a desferir chicotadas por todos os lados enquanto os camponeses choravam e corriam desesperados. Os que ousavam encarar os inimigos, eram castigados.
XXV.
Prevendo uma carnificina, Aiorius não se conteve. O clérigo pediu que Kara protegesse Espartakus e, concentrando-se, olhou para o céu enquanto a sacerdotisa se afastava, tomando o filho do ferreiro pela mão e o arrastando dali.
— Alto lá! — a voz de Aiorius ecoou poderosa pelas terras de Lakar.
Alguns dos invasores se imobilizaram diante de tal poder e camponeses abaixaram-se e cobriram suas cabeças, temendo um mal ainda maior.
O clérigo de Teles avançou para o meio do povoado, apontando para o ruivo corpulento que parecia ser o líder do bando.
— Você. — continuou o clérigo com a voz poderosa. — Liberte estas pessoas.
O sujeito manteve-se imóvel fitando Aiorius. O silêncio se prolongou e não se podia dizer que o grandalhão não fora afetado pelo poder do clérigo desconhecido.
— Por que eu faria isso? — perguntou ele como se lutasse contra algum pensamento.
A lamentação das pessoas e os sons de combate ao redor diminuíam.
— Porque eu estou mandando. — continuou Aiorius no mesmo tom. — E você não vai me desafiar.
O silêncio se tornara completo. O ruivo parecia reunir forças para agir, mas permanecia imobilizado.
— Eu, Aiorius, ordeno que reúna seus homens e parta. — tornou o clérigo de modo ainda mais intenso.
Alguns dos membros do bando invasor já abaixavam suas armas e encaravam o clérigo com os olhos vidrados. O líder, porém, não se movia.
— Aiorius! — o ruivo falou com grande ira, como se lutasse para que sua voz pudesse sair pela garganta. — Aiorius! — gritou alto. — Você... — enquanto pronunciava a última palavra, fez um esforço tremendo para erguer o braço que empunhava a cimitarra e correu contra o recém-chegado.
Aiorius sacou sua própria espada para se defender e a arma reluziu na noite escura. As espadas se chocaram no ar e começou um duelo feroz. No início, arma se batia contra arma e a luta parecia equilibrada. Mas logo se ouviu um grunhido saindo da boca do ruivo e Aiorius imediatamente percebeu que não podia mexer as pernas. Sentiu-as prendendo-se ao solo sob a força de uma energia poderosa. E desequilibrou-se. Ao mesmo tempo em que fazia um movimento para se equilibrar, fez também um enorme e inútil esforço para soltar as pernas. Mas, com isso, acabou se distraindo do adversário e recebeu um corte profundo no braço.
Quando recebeu o golpe, Aiorius agarrou, com a canhota, o braço da arma do ruivo e, concentrando-se, emitiu uma energia pelo toque. O outro gritou de dor e deixou cair a cimitarra, voltando os olhos para Aiorius apavorado.
O clérigo, ainda mantendo a canhota firme prendendo o sujeito e emitindo uma dolorosa energia, pressionou, com a mão ferida, a ponta de sua espada contra a garganta adversária. Nos olhos do ruivo via transbordar um ódio inumano.
— Mande que todos seus homens recuem e deixem o vilarejo. — comandou Aiorius.
O outro rosnou para ele.
— Agora! — gritou o clérigo.
— Mate-me. — o sujeito cuspiu entre os dentes em desafio.
Aiorius, contrariado, pressionou a arma contra a garganta do ruivo e, em seguida, soltou-o e deixou seu corpo tombar no solo. No instante seguinte, suas pernas estavam livres e ele se voltava para observar a reação produzida pela queda do líder. Alguns homens da Sombra estavam paralisados, outros permaneciam com os olhos vidrados, outros, porém, logo se armaram para se vingar e partiram em direção a Aiorius.
XXVI.
No mesmo momento, a voz de Kara, que se aproximara novamente do lugar onde estivera antes, ecoou amplificada e poderosa pelas terras de Lakar. Ela reproduzira uma palavra em Língua Dracônica e o som, como um chiado, desapareceu depressa. Em um breve instante nada aconteceu, mas logo aqueles que corriam em direção a Aiorius perceberam que não mais empunhavam armas, mas cobras. E, desesperados, as atiravam ao solo lutando contra suas picadas venenosas.
Essa situação gerou um desequilíbrio do lado dos cultuadores da Sombra, o que acabou com a apatia de alguns camponeses. Os mais corajosos, à medida que entendiam o que estava acontecendo, municiavam-se de armas retiradas das carroças dos captores e preparavam-se para combatê-los, reunindo uma coragem que nunca antes haviam conhecido. Aqueles que nada podiam fazer procuravam abrigo e se escondiam.
Quando os camponeses enfim entraram no combate, o confronto se tornou terrível. Os membros da Ordem da Sombra eram muito mais organizados e recompunham suas defesas, embora alguns já estivessem espalhados pelo povoado.
Vários golpes e outras tantas picadas foram desferidos ao mesmo tempo e diversos fluidos jorraram pelo chão de Lakar.
XXVII.
Em meio à confusão e enquanto Kara detinha, com uma palavra de comando, um inimigo que viera sobre ela, outro preparava um ataque contra suas costas. Ela não o vira e, quando se voltou no calor da luta, tampouco teve tempo de tomar qualquer providência. Então, com a cimitarra sobre sua cabeça, no milésimo de segundo em que se despedia da vida, um martelo de ferreiro voou de encontro ao seu adversário, acertando-o em cheio na cabeça e derrubando-o em seguida.
Ela voltou-se, incrédula, para a direção de onde o martelo fora arremessado e não acreditou no que seus olhos lhe revelaram. Espartakus o atirara. O rapaz estava ainda em posição de ataque quando ela o mirou, com a destra esticada e a canhota fechando a guarda no peito. Mas, no momento seguinte, ele passou a tatear o vento, aproximando-se do combate.
— Impossível. — disse ela piscando os olhos e voltando-se para o homem caído a seus pés. Mas foi muito breve o momento de observação e reflexão que a luta lhe permitiu, pois outro inimigo partia contra ela e era preciso se concentrar e se defender.
Ela parou um adversário com um gesto e logo camponeses se acercaram dela. Espartakus se juntava a eles e Kara temeu por sua segurança. Assim que conseguiu se desvencilhar de um grupo de inimigos, ela correu ao encontro do filho do ferreiro, que empunhava uma machadinha e desferia golpes aleatoriamente, e o afastou novamente da luta.
XXVIII.
Por fim, com sangue espalhado por todos os lados e a madrugada avançada, o povo de Lakar obteve sua vitória.
Ao contrário do que esperava o clérigo Aiorius, não sobrou nenhum membro da Ordem do Culto da Sombra para interrogar. Aqueles que os camponeses não perseguiram e mataram, provavelmente conseguiram fugir, pois muitos se espalharam durante o combate.
Ao fim da luta, tanto o clérigo quanto a sacerdotisa, bem como os aldeões, estavam esgotados e havia muitos feridos. Perceberam que Tívan estivera presente na batalha juntamente com um grupo de homens leais que se reunira às pressas. O velho Espartakus também assumira a liderança de um grupo durante o confronto.
Ao amanhecer, Kara se retirara para um local mais isolado, onde montaram uma tenda para ela, e apenas cuidava dos feridos que estavam inconscientes. Aiorius ajudava a tratar dos demais. O povo limpava e queimava os restos do confronto, tanto corpos quanto destroços. Muitos choravam seus entes queridos e ainda estavam perplexos diante do terror do acontecido.
O velho ferreiro ajudava muitas pessoas a se reerguerem e estimulava-as a trabalhar, dizendo que precisavam colocar as coisas em ordem e que só então poderiam descansar. Falava-lhes que o desespero não deveria ter lugar entre eles, afinal ainda era incerto o futuro que os aguardava. E seu trabalho fazia com que muitos aldeões o respeitassem.
XXIX.
Ao fim daquele dia, após ter conversado com o ferreiro Espartakus, com Tívan e com vários outros e obtido mais informações detalhadas sobre o período de sítio do vilarejo, Aiorius procurou a sacerdotisa para conversar.
Antes que ele pudesse tratar do assunto da Ordem da Sombra, ela pediu notícias do jovem Espartakus. Aiorius lhe disse que ele permanecia no mesmo estado, mas que não se encontrava ferido pelo combate. Kara contou-lhe então, emocionada, o que se sucedera no confronto quando o rapaz salvara sua vida.
O clérigo de Teles a ouviu com ar de surpresa, mas nada disse, afinal nada tinha a dizer.
Kara, admirada, tentava explicar a si mesma o que acontecera. Ainda refletindo, remexeu-se inquieta.
— Parece-me que esse rapaz é detentor de algum poder, senhor Aiorius. — disse ela por fim. — E tenho uma dívida com ele... Preciso compensá-lo por ter salvado minha vida.
Aiorius sentia a tensão da sacerdotisa.
— Em que está pensando, nobre Kara? — perguntou ele cauteloso.
— Preciso fazer algo por ele. — disse ela de modo urgente — Posso fazer algo por ele. — afirmou decidindo-se.
Aiorius refletiu por um tempo e depois balançou a cabeça preocupado.
— Pense bem, senhorita Kara. — disse ele com a voz mansa, porém contendo um sério alerta — E tenha sempre em mente as consequências... — acrescentou e fez que ia deixá-la.
— Espere! — Kara o deteve — Posso contar com sua ajuda?
— Sempre. — suspirou o clérigo a meia voz, depois de um tempo. — Concordo que ele não mereça o destino que lhe foi imposto.
XXX.
Ainda naquela noite, Kara pediu a Aiorius que trouxesse Espartakus até sua presença e que depois os deixasse. O clérigo a atendeu, não sem antes rabiscar alguns símbolos em Língua Dracônica no chão de terra onde se erguia a barraca. Tais símbolos eram usados em rituais mágicos de proteção e cura.
A seguir, a sacerdotisa acrescentou àqueles os seus próprios desenhos, em uma versão ainda mais antiga daquela língua. Então se concentrou por longo tempo em sua energia interior, esvaziando a mente e pensando em Espartakus, que estava deitado a seus pés.
A moça não o tocou nem usou qualquer outro componente mágico material. Assim, apenas com a força de sua intenção, tendo feito Espartakus mergulhar em um sono profundo, após longo tempo, viu-o despertar de repente para a vida.
O rapaz, ao abrir os olhos, de imediato percebeu que enxergava, pois o teto da barraca era nítido sobre sua cabeça.
Em seguida, soube que ouvia, embora o mundo estivesse completamente silencioso ao seu redor.
Por fim, sentiu que poderia falar se quisesse, mesmo estando com a boca seca e amarga.
Correu então os olhos pelo lugar e deparou-se com a figura encurvada de Kara. Ela não usava o elmo que antes encobria sua cabeça. Estava abatida, o rosto suado e a respiração resfolegante. Mas seus olhos brilhavam com calor, embora os mantivesse baixos. A mente de Espartakus clareava devagar enquanto a mirava. Foi então que, num relance, compreendeu o que se sucedera e, assustado e cheio de gratidão, voltou-se bruscamente para o outro lado e baixou a cabeça.
— Perdoe-me. — sussurrou ele com os olhos marejados.
— Eu já disse antes que seus crimes, de minha parte, estavam perdoados. — disse ela devagar e com serenidade — O senhor nada fez contra mim.
— Obrigado. — tornou ele cheio de devoção — Palavra alguma é suficiente...
— Não agradeça. — cortou ela — O senhor salvou minha vida. Como fez aquilo?
— O quê?! — ele perguntou ligeiramente confuso, mas logo percebeu do que se tratava. Ele nada vira na noite anterior, nem ouvira, mas sentira que precisava agir. Algo em seu íntimo lhe dissera que aquele martelo deveria sair de suas mãos naquele momento para evitar um grande mal contra a sacerdotisa e ele o atirou. Foi o que tentou explicar a ela em seguida.
— Então sabia que eu estava em perigo! — concluiu Kara ainda mais admirada.
— Sim. — respondeu ele com o coração agitado. — Mas o que fiz foi apenas confiar em meus instintos.
— E o que seus instintos lhe dizem agora? — a sacerdotisa atirou a pergunta irrefletidamente.
— Dizem que jamais poderei recompensá-la pelo que fez por mim.
— Então teremos de viver nos recompensando. — tornou Kara, com o coração acelerado.
— E nos desculpando. — acrescentou ele. — Afinal, pelo que me lembro, não deveria estar falando com a senhorita.
— O senhor não o provocou em momento algum. A culpa foi sempre minha. Receio que, por isso, eu também deva receber meu castigo. Por isso e por tê-lo feito sofrer.
— Não! — Espartakus assustou-se e, num gesto rápido, começou a se virar, mas conteve-se. — Não. — repetiu devagar. — Eu não poderia viver com isso.
— O senhor deve viver. — disse ela de um modo estranho — E eu também devo. Nossos caminhos não se cruzaram por acaso... — ela ficou em silêncio por um longo tempo e Espartakus temeu que não voltasse a falar. Sua voz soava para ele como um flautim. — Penso que meus tempos de sacerdotisa possam estar chegando ao fim.
— O que quer dizer com isso? — ele perguntou confuso.
— Que talvez exista outro caminho para mim.
Ele novamente fez que ia se virar, mas se conteve relutante.
— Deixe-me vê-lo. — pediu ela. — Eu gostaria de conhecer verdadeiramente os seus olhos, embora já conheça seu coração.
Espartakus se sobressaltou e virou-se devagar, mantendo a cabeça baixa. Então a olhou e a ternura daquele semblante o invadiu e jorrou em seu peito, inundando-o com calor. Ele não podia conter o desejo de tocá-la, mas o conteve com dignidade. Seu coração estava em uma sintonia descompassada. Kara, embora doce, tinha um olhar ao mesmo tempo cauteloso e sagaz e observava cada movimento que ele fazia, sempre com curiosidade.
— Vamos falar sobre o futuro. — disse ela. — Agora que a situação de Lakar foi contornada.
Espartakus assentiu confuso e esperou, confiando nela.
— O senhor está em perigo. — tornou Kara. — Não poderemos esconder por muito tempo o que aconteceu aqui e, se ficar em Lakar, poderá ser perseguido pelos clérigos. Acredite, sua ira é tão implacável quanto sua devoção no que diz respeito às tradições. E, no momento, estou quebrando todas as regras. Curá-lo foi uma afronta sem precedentes aos preceitos do Templo do Único. Mas a culpa maior recairá sobre o senhor.
— Então novamente a atinjo, colocando-a em perigo. — Espartakus se lamentou.
— O senhor não ouve o que digo. — disse ela desapontada.
— Venha comigo! — disse ele, como se não a houvesse escutado — Vamos embora daqui.
— Espartakus. — ela pronunciou o nome com tal intensidade que ele ficou paralisado. — Deixaria tudo o que tem para fugir comigo?
Ele a fitou por um momento como se tivesse escutado a maior insanidade, mas, aos poucos, assumiu o controle de si e, reunindo forças, disse:
— Sim. — quando acabou de pronunciar a palavra, sentiu como se ela quisesse ouvir o contrário.
A sacerdotisa realmente achava que deveria ouvir o contrário, mas não pôde controlar as batidas de seu coração enquanto contemplava os olhos do filho do ferreiro e via neles a mais pura sinceridade. Ela se delongou observando e percebeu que Espartakus se aproximava, então se afastou de súbito.
— Não é o momento. — disse de uma vez. — Não ainda. — prosseguiu recompondo-se. — O senhor não está pronto. Precisa se preparar. E eu preciso voltar e me assegurar de que não desconfiarão, por ora, de sua partida, nem tampouco de sua recuperação. Devo arcar com meus crimes e me purificar... Mas estou certa de que nos veremos de novo.
— Senhorita, eu... — começou Espartakus.
— Nobre, Kara. — ouviram a voz de Aiorius chamando de fora da tenda.
Espartakus se sobressaltou e virou-se para o outro lado.
XXXI.
— Venha, senhor Aiorius. — chamou Kara, vestindo novamente o elmo. — Ele está recuperado.
— Ótimo. — disse Aiorius. — Então já podemos partir.
Espartakus o mirou com uma interrogação e quis ver o rosto de Kara para saber se eles haviam combinado aquilo, mas não se voltou.
— O problema de Lakar está resolvido, pelo menos por enquanto, mas você não pode ficar aqui, Espartakus. — tornou Aiorius. — Se souberem que a sacerdotisa o curou, virão atrás de você. E certamente ela também terá problemas. Receio que o senhor não tem escolha.
— Compreendo... — disse ele. — Farei o que for preciso. Irei onde puder.
— Você virá comigo. — voltou o clérigo — Precisará aprender algumas coisas para se defender. Além disso, acredito que tenha alguns motivos para querer me ajudar na questão dos membros da Ordem da Sombra.
— Sim, tenho. — assentiu Espartakus. — E lhe agradeço.
— Permitirei que se despeça de seu pai. — prosseguiu Aiorius — Os demais devem pensar que morreu ou se perdeu.
Espartakus assentiu silencioso, pensando, destruído, em sua mãe e irmãos. Mas em seu coração prometia a si mesmo que se tornaria forte o bastante para voltar a Lakar algum dia e reparar mais esse erro. E pensou em Kara com inevitável fascínio e na possibilidade de olhá-la novamente algum dia, mesmo estando ciente do desrespeito ao juramento que fizera no Templo do Único.
E então Kara se retirou em silêncio, mantendo a cabeça baixa e o rosto coberto. Aiorius chamou o velho ferreiro para dentro da tenda e Espartakus desabou de emoção. Pai e filho se abraçaram e choraram. Enquanto se despediam, o clérigo e a sacerdotisa conversaram longamente do lado de fora da tenda. Ao amanhecer, nem Aiorius, nem Espartakus, nem Kara foram vistos em Lakar.


Fim. Por enquanto...

Comentários


  1. Estou sentindo cheiro de romance no ar........ Será que Espartakus e Kara vão se entregar a paixão?!

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    1. Kara pensa que os caminhos de ambos não se cruzaram por acaso e tem certeza de que os dois se reencontrarão novamente. Veremos o que acontece quando eles se reencontrarem...
      Essa história se impõe em minha mente e não vejo a hora de moldá-la e recriá-la no papel. Certamente ainda virá uma continuação! Fique de olho! E obrigada por ter nos acompanhado até aqui.

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  2. Muito boa a história! espero poder ler mais em breve.

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    1. Que bom que gostou! Obrigada pela leitura. Logo teremos novas histórias. Fique de olho!

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    2. Achei que haviam arrancado seus olhos e estourados seus tímpanos e cortado sua língua... De fato acho que deveria publicar 2 capítulos por semana.

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    3. :) kkk acho que foi um pouco menos drástico, né? Espero um dia conseguir soltar dois por semana...

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  3. Quando será publicado novo conteúdo? Estou ansioso por mais.

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    1. Olá! Em sua homenagem, acabo de postar um novo conto. :) Dê uma olhadinha em "A carta", espero que goste! Estou em uma pequena viagem de férias, mas voltarei à ativa em breve. Obrigada pela leitura.

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