Pactos. Entre justos e pecadores. Parte 5
XXI.
Quando Aiorius e Espartakus deixaram o Templo do Único, dois dias depois,
o jovem homem não ouvia, nem falava, nem enxergava. Conforme sentenciado, ele
fora envolvido pela magia de Dúkar, uma névoa densa e brilhante, que lentamente
retirara seus sentidos um a um.
A sacerdotisa nada fizera para impedir seu castigo, tampouco o clérigo
Aiorius, de Teles. E todos os demais membros do Conselho assistiram ao seu
tormento sem nada dizer. Espartakus também nada disse; não se lamentou nem
resistiu. Escolheu confiar na palavra do clérigo de Teles, que agora descia as
montanhas com ele rumo a Lakar. E embora não pudesse vê-lo ou ouvi-lo, ele
sentia-o e algo em seu íntimo lhe assegurava de que ainda estaria com ele por
algum tempo.
Para surpresa de Aiorius, três dias depois, um guerreiro utilizando uma
armadura aproximou-se deles. O sujeito vestia uma cota de malha que lhe cobria
até os punhos e caía abaixo da cintura. Usava um elmo metálico que lhe tampava
todo o rosto. Uma calça de couro grosso cobria suas pernas. Ele usava ainda
luvas e botas e se envolvia em uma longa e ampla capa negra. Movia-se
silenciosamente e o clérigo só o notou quando ele estava perto. Aiorius, então,
esperou que ele se aproximasse mais e manteve-se segurando o cabo da espada que
levava às costas.
Mas, ao se acercar, aumentando a surpresa do clérigo, o guerreiro falou e
sua voz era fina e cristalina:
— Vou acompanhá-los. — o som ecoou de dentro da armadura. Era uma mulher.
E a mulher era Kara.
Aiorius recebeu a notícia, a princípio, com satisfação, mas em seguida
preocupou-se. Tentou argumentar com ela, dizendo-lhe que o certo seria voltar,
pois poderia ter problemas caso soubessem o que ela estava fazendo. Os dois
debateram longamente, mas Kara estava irredutível. De trás de sua máscara, ela
fitava Espartakus penalizada, mas o rapaz sequer dera por sua presença. O filho
do ferreiro imaginava que estavam apenas descansando. E não havia como lhe
explicar o que estava acontecendo.
Ao fim, Aiorius perdeu a discussão e deixou a sacerdotisa seguir no
caminho que escolhera. Em realidade, a companhia dela muito o alegrava. Era bom
ter alguém com quem pudesse contar, além de Espartakus. E ela, de fato, ajudou
bastante na descida da Cordilheira.
A princípio, quando ela começou a ajudar Espartakus, o moço estranhou o
fato de ter mais uma mão para segurar, além da de Aiorius, quando o terreno se
mostrava muito difícil. E embora não pudesse compreender essa mudança, ela
aqueceu o seu espírito e abrandou seu desespero. Sentia, quando ela o tocava, a
mesma sensação de calma que o invadira ao ser sentenciado durante o julgamento
do Conselho. E isso o deixava estranhamente seguro, apesar de tudo.
XXII.
E, assim, devido às limitações e dificuldades de locomoção do filho do
ferreiro, aproximaram-se do povoado apenas dezessete dias após terem partido do
Templo, já decorridos quase três meses desde o ataque. E ali encontraram um
cenário um pouco mais sombrio do que o que o rapaz deixara para trás, porém não
tão sombrio quanto Kara e Aiorius poderiam esperar.
A vigilância intensificara-se e havia muitos homens do bando dos
saqueadores no povoado realizando a coleta. Os aldeões trabalhavam apressados
enquanto os invasores estavam à paisana, exibindo chicotes grossos e gritando
palavras de comando. Naquela noite, havia carroças sendo abastecidas com
suprimentos e armas e sendo preparadas para viagem. Mulas e cavalos haviam sido
trazidos para perto das carroças e estavam presos em gradis de madeira. Alguns
homens preparavam-lhes cabrestos, outros corriam para trazer algum material que
ficara para trás.
O clérigo e a sacerdotisa aproximaram-se cautelosamente do local onde
havia a maior aglomeração de pessoas. Posicionaram-se nas sombras e dali
observaram a situação do vilarejo por um bom tempo. Com base em descrições
detalhadas de Lakar e de seus habitantes, que Espartakus fornecera quando ainda
estavam no Templo, tentaram detectar o líder dos ruivos e os parentes de
Espartakus. Não localizaram os parentes de Espartakus, porém Aiorius enxergou o
sujeito que deveria ser o líder do grupo, exatamente como o rapaz dissera.
Enquanto observavam, Aiorius e Kara trocaram, aos sussurros, diversas
impressões quanto aos invasores. Aiorius julgava que eles haviam sido bem
descritos por Espartakus. Além de tudo, ostentavam uma postura superior e
olhares cruéis. Não se pareciam, realmente, com os homens de Impéria. Lembravam
vagamente a Aiorius as características dos habitantes de Ílios. Esse conjunto
de fatores, aliado ao que pôde ouvir de suas vozes longínquas, fez o clérigo
acreditar tratar-se, de fato, de uma invasão da Ordem do Culto da Sombra. Mas
apenas isso não o ajudava a adivinhar seus objetivos.
O clérigo e a sacerdotisa perceberam que a maioria dos cultuadores da
Sombra guardava as carroças e pouco trabalhava. Eles apenas supervisionavam o
trabalho dos demais e estavam bem municiados de armas. No geral, pareciam
gostar de dar ordens e castigar os escravos.
XXIII.
Ocorrera a Aiorius, de antemão, além de se infiltrar e obter informações,
a ideia de seguir os cultuadores da Sombra até seu destino e investigar seus
propósitos. E com essa intenção viera do Templo. Porém, após observá-los,
refletiu e discutiu a questão com Kara. Ambos concordaram que, além de se
tratar de uma empreitada muito arriscada devido à quantidade de inimigos e à
incógnita quanto ao que poderiam encontrar, deveriam priorizar o compromisso
assumido com Espartakus e procurar um meio de cumpri-lo.
Enquanto consideravam tais questões, o clérigo pôs-se a pensar também no
melhor modo de não deixar que aquele carregamento seguisse seu trajeto e, ainda,
em uma forma de poder capturar e interrogar a maior quantidade possível de
inimigos.
Aiorius, no entanto, não queria agir antes de conversar com camponeses ou
até com o velho ferreiro, pai de Espartakus, que poderiam lhe dizer mais coisas
sobre a atual situação do vilarejo. Ele gostaria de poder saber a quantidade de
invasores e a frequência de aparição de outros inimigos além dos que se
instalaram outrora no povoado, aventando a possibilidade de haver algum
acampamento na região. Aiorius considerava quão arriscada poderia ser a
investida contra eles.
Kara alertava quanto às dificuldades de enfrentar todos aqueles homens e
à necessidade de saber se poderiam contar, ou não, com os camponeses no caso de
uma batalha. E se, pelo menos, eles seriam capazes de fugir, em caso de
necessidade.
Uma situação, porém, veio a tirar Aiorius e Kara de suas divagações.
XXIV.
Uma grande confusão se iniciara porque um camponês se recusara a carregar
um fardo muito pesado que lhe fora designado. Ele levou algumas chicotadas e
esbravejou com um capataz. Ferido e humilhado, foi obrigado a sustentar o peso,
e proibiram que outros viessem ajudá-lo. Ele tentou, em um esforço
sobre-humano, cumprir o que lhe mandaram, mas tombou ao chão.
A essa altura, muitos haviam parado para ver o que se passava. Mas os da
Ordem pareciam ter pressa e a balbúrdia os incomodava, então o líder deles veio
para junto do grupo pisando duro. Gritou um comando rude com um sotaque
acentuado ao camponês. Este, sem êxito, lançou mão de suas últimas forças e, em
seguida, sentiu uma lâmina fria atravessar-lhe o dorso.
Ouviram-se muitos gritos de terror e de ódio e também algumas risadas
malignas. Os homens da Ordem puseram-se a desferir chicotadas por todos os
lados enquanto os camponeses choravam e corriam desesperados. Os que ousavam
encarar os inimigos, eram castigados.
XXV.
Prevendo uma carnificina, Aiorius não se conteve. O clérigo pediu que
Kara protegesse Espartakus e, concentrando-se, olhou para o céu enquanto a
sacerdotisa se afastava, tomando o filho do ferreiro pela mão e o arrastando
dali.
— Alto lá! — a voz de Aiorius ecoou poderosa pelas terras de Lakar.
Alguns dos invasores se imobilizaram diante de tal poder e camponeses
abaixaram-se e cobriram suas cabeças, temendo um mal ainda maior.
O clérigo de Teles avançou para o meio do povoado, apontando para o ruivo
corpulento que parecia ser o líder do bando.
— Você. — continuou o clérigo com a voz poderosa. — Liberte estas
pessoas.
O sujeito manteve-se imóvel fitando Aiorius. O silêncio se prolongou e
não se podia dizer que o grandalhão não fora afetado pelo poder do clérigo
desconhecido.
— Por que eu faria isso? — perguntou ele como se lutasse contra algum
pensamento.
A lamentação das pessoas e os sons de combate ao redor diminuíam.
— Porque eu estou mandando. — continuou Aiorius no mesmo tom. — E você
não vai me desafiar.
O silêncio se tornara completo. O ruivo parecia reunir forças para agir,
mas permanecia imobilizado.
— Eu, Aiorius, ordeno que reúna seus homens e parta. — tornou o clérigo
de modo ainda mais intenso.
Alguns dos membros do bando invasor já abaixavam suas armas e encaravam o
clérigo com os olhos vidrados. O líder, porém, não se movia.
— Aiorius! — o ruivo falou com grande ira, como se lutasse para que sua
voz pudesse sair pela garganta. — Aiorius! — gritou alto. — Você... — enquanto
pronunciava a última palavra, fez um esforço tremendo para erguer o braço que
empunhava a cimitarra e correu contra o recém-chegado.
Aiorius sacou sua própria espada para se defender e a arma reluziu na
noite escura. As espadas se chocaram no ar e começou um duelo feroz. No início,
arma se batia contra arma e a luta parecia equilibrada. Mas logo se ouviu um
grunhido saindo da boca do ruivo e Aiorius imediatamente percebeu que não podia
mexer as pernas. Sentiu-as prendendo-se ao solo sob a força de uma energia
poderosa. E desequilibrou-se. Ao mesmo tempo em que fazia um movimento para se
equilibrar, fez também um enorme e inútil esforço para soltar as pernas. Mas,
com isso, acabou se distraindo do adversário e recebeu um corte profundo no
braço.
Quando recebeu o golpe, Aiorius agarrou, com a canhota, o braço da arma
do ruivo e, concentrando-se, emitiu uma energia pelo toque. O outro gritou de
dor e deixou cair a cimitarra, voltando os olhos para Aiorius apavorado.
O clérigo, ainda mantendo a canhota firme prendendo o sujeito e emitindo
uma dolorosa energia, pressionou, com a mão ferida, a ponta de sua espada
contra a garganta adversária. Nos olhos do ruivo via transbordar um ódio
inumano.
— Mande que todos seus homens recuem e deixem o vilarejo. — comandou
Aiorius.
O outro rosnou para ele.
— Agora! — gritou o clérigo.
— Mate-me. — o sujeito cuspiu entre os dentes em desafio.
Aiorius, contrariado, pressionou a arma contra a garganta do ruivo e, em
seguida, soltou-o e deixou seu corpo tombar no solo. No instante seguinte, suas
pernas estavam livres e ele se voltava para observar a reação produzida pela
queda do líder. Alguns homens da Sombra estavam paralisados, outros permaneciam
com os olhos vidrados, outros, porém, logo se armaram para se vingar e partiram
em direção a Aiorius.
XXVI.
No mesmo momento, a voz de Kara, que se aproximara novamente do lugar
onde estivera antes, ecoou amplificada e poderosa pelas terras de Lakar. Ela
reproduzira uma palavra em Língua Dracônica e o som, como um chiado,
desapareceu depressa. Em um breve instante nada aconteceu, mas logo aqueles que
corriam em direção a Aiorius perceberam que não mais empunhavam armas, mas
cobras. E, desesperados, as atiravam ao solo lutando contra suas picadas venenosas.
Essa situação gerou um desequilíbrio do lado dos cultuadores da Sombra, o
que acabou com a apatia de alguns camponeses. Os mais corajosos, à medida que
entendiam o que estava acontecendo, municiavam-se de armas retiradas das
carroças dos captores e preparavam-se para combatê-los, reunindo uma coragem
que nunca antes haviam conhecido. Aqueles que nada podiam fazer procuravam
abrigo e se escondiam.
Quando os camponeses enfim entraram no combate, o confronto se tornou
terrível. Os membros da Ordem da Sombra eram muito mais organizados e
recompunham suas defesas, embora alguns já estivessem espalhados pelo povoado.
Vários golpes e outras tantas picadas foram desferidos ao mesmo tempo e
diversos fluidos jorraram pelo chão de Lakar.
XXVII.
Em meio à confusão e enquanto Kara detinha, com uma palavra de comando,
um inimigo que viera sobre ela, outro preparava um ataque contra suas costas.
Ela não o vira e, quando se voltou no calor da luta, tampouco teve tempo de
tomar qualquer providência. Então, com a cimitarra sobre sua cabeça, no
milésimo de segundo em que se despedia da vida, um martelo de ferreiro voou de
encontro ao seu adversário, acertando-o em cheio na cabeça e derrubando-o em
seguida.
Ela voltou-se, incrédula, para a direção de onde o martelo fora arremessado
e não acreditou no que seus olhos lhe revelaram. Espartakus o atirara. O rapaz
estava ainda em posição de ataque quando ela o mirou, com a destra esticada e a
canhota fechando a guarda no peito. Mas, no momento seguinte, ele passou a
tatear o vento, aproximando-se do combate.
— Impossível. — disse ela piscando os olhos e voltando-se para o homem
caído a seus pés. Mas foi muito breve o momento de observação e reflexão que a
luta lhe permitiu, pois outro inimigo partia contra ela e era preciso se concentrar
e se defender.
Ela parou um adversário com um gesto e logo camponeses se acercaram dela.
Espartakus se juntava a eles e Kara temeu por sua segurança. Assim que
conseguiu se desvencilhar de um grupo de inimigos, ela correu ao encontro do
filho do ferreiro, que empunhava uma machadinha e desferia golpes
aleatoriamente, e o afastou novamente da luta.
XXVIII.
Por fim, com sangue espalhado por todos os lados e a madrugada avançada,
o povo de Lakar obteve sua vitória.
Ao contrário do que esperava o clérigo Aiorius, não sobrou nenhum membro
da Ordem do Culto da Sombra para interrogar. Aqueles que os camponeses não
perseguiram e mataram, provavelmente conseguiram fugir, pois muitos se
espalharam durante o combate.
Ao fim da luta, tanto o clérigo quanto a sacerdotisa, bem como os
aldeões, estavam esgotados e havia muitos feridos. Perceberam que Tívan estivera
presente na batalha juntamente com um grupo de homens leais que se reunira às
pressas. O velho Espartakus também assumira a liderança de um grupo durante o
confronto.
Ao amanhecer, Kara se retirara para um local mais isolado, onde montaram
uma tenda para ela, e apenas cuidava dos feridos que estavam inconscientes.
Aiorius ajudava a tratar dos demais. O povo limpava e queimava os restos do
confronto, tanto corpos quanto destroços. Muitos choravam seus entes queridos e
ainda estavam perplexos diante do terror do acontecido.
O velho ferreiro ajudava muitas pessoas a se reerguerem e estimulava-as a
trabalhar, dizendo que precisavam colocar as coisas em ordem e que só então
poderiam descansar. Falava-lhes que o desespero não deveria ter lugar entre
eles, afinal ainda era incerto o futuro que os aguardava. E seu trabalho fazia
com que muitos aldeões o respeitassem.
XXIX.
Ao fim daquele dia, após ter conversado com o ferreiro Espartakus, com
Tívan e com vários outros e obtido mais informações detalhadas sobre o período
de sítio do vilarejo, Aiorius procurou a sacerdotisa para conversar.
Antes que ele pudesse tratar do assunto da Ordem da Sombra, ela pediu
notícias do jovem Espartakus. Aiorius lhe disse que ele permanecia no mesmo
estado, mas que não se encontrava ferido pelo combate. Kara contou-lhe então,
emocionada, o que se sucedera no confronto quando o rapaz salvara sua vida.
O clérigo de Teles a ouviu com ar de surpresa, mas nada disse, afinal
nada tinha a dizer.
Kara, admirada, tentava explicar a si mesma o que acontecera. Ainda
refletindo, remexeu-se inquieta.
— Parece-me que esse rapaz é detentor de algum poder, senhor Aiorius. —
disse ela por fim. — E tenho uma dívida com ele... Preciso compensá-lo por ter
salvado minha vida.
Aiorius sentia a tensão da sacerdotisa.
— Em que está pensando, nobre Kara? — perguntou ele cauteloso.
— Preciso fazer algo por ele. — disse ela de modo urgente — Posso fazer
algo por ele. — afirmou decidindo-se.
Aiorius refletiu por um tempo e depois balançou a cabeça preocupado.
— Pense bem, senhorita Kara. — disse ele com a voz mansa, porém contendo
um sério alerta — E tenha sempre em mente as consequências... — acrescentou e
fez que ia deixá-la.
— Espere! — Kara o deteve — Posso contar com sua ajuda?
— Sempre. — suspirou o clérigo a meia voz, depois de um tempo. — Concordo
que ele não mereça o destino que lhe foi imposto.
XXX.
Ainda naquela noite, Kara pediu a Aiorius que trouxesse Espartakus até
sua presença e que depois os deixasse. O clérigo a atendeu, não sem antes
rabiscar alguns símbolos em Língua Dracônica no chão de terra onde se erguia a
barraca. Tais símbolos eram usados em rituais mágicos de proteção e cura.
A seguir, a sacerdotisa acrescentou àqueles os seus próprios desenhos, em
uma versão ainda mais antiga daquela língua. Então se concentrou por longo
tempo em sua energia interior, esvaziando a mente e pensando em Espartakus, que
estava deitado a seus pés.
A moça não o tocou nem usou qualquer outro componente mágico material.
Assim, apenas com a força de sua intenção, tendo feito Espartakus mergulhar em
um sono profundo, após longo tempo, viu-o despertar de repente para a vida.
O rapaz, ao abrir os olhos, de imediato percebeu que enxergava, pois o
teto da barraca era nítido sobre sua cabeça.
Em seguida, soube que ouvia, embora o mundo estivesse completamente
silencioso ao seu redor.
Por fim, sentiu que poderia falar se quisesse, mesmo estando com a boca
seca e amarga.
Correu então os olhos pelo lugar e deparou-se com a figura encurvada de
Kara. Ela não usava o elmo que antes encobria sua cabeça. Estava abatida, o
rosto suado e a respiração resfolegante. Mas seus olhos brilhavam com calor,
embora os mantivesse baixos. A mente de Espartakus clareava devagar enquanto a
mirava. Foi então que, num relance, compreendeu o que se sucedera e, assustado
e cheio de gratidão, voltou-se bruscamente para o outro lado e baixou a cabeça.
— Perdoe-me. — sussurrou ele com os olhos marejados.
— Eu já disse antes que seus crimes, de minha parte, estavam perdoados. —
disse ela devagar e com serenidade — O senhor nada fez contra mim.
— Obrigado. — tornou ele cheio de devoção — Palavra alguma é
suficiente...
— Não agradeça. — cortou ela — O senhor salvou minha vida. Como fez
aquilo?
— O quê?! — ele perguntou ligeiramente confuso, mas logo percebeu do que
se tratava. Ele nada vira na noite anterior, nem ouvira, mas sentira que
precisava agir. Algo em seu íntimo lhe dissera que aquele martelo deveria sair
de suas mãos naquele momento para evitar um grande mal contra a sacerdotisa e
ele o atirou. Foi o que tentou explicar a ela em seguida.
— Então sabia que eu estava em perigo! — concluiu Kara ainda mais
admirada.
— Sim. — respondeu ele com o coração agitado. — Mas o que fiz foi apenas
confiar em meus instintos.
— E o que seus instintos lhe dizem agora? — a sacerdotisa atirou a
pergunta irrefletidamente.
— Dizem que jamais poderei recompensá-la pelo que fez por mim.
— Então teremos de viver nos recompensando. — tornou Kara, com o coração
acelerado.
— E nos desculpando. — acrescentou ele. — Afinal, pelo que me lembro, não
deveria estar falando com a senhorita.
— O senhor não o provocou em momento algum. A culpa foi sempre minha.
Receio que, por isso, eu também deva receber meu castigo. Por isso e por tê-lo
feito sofrer.
— Não! — Espartakus assustou-se e, num gesto rápido, começou a se virar,
mas conteve-se. — Não. — repetiu devagar. — Eu não poderia viver com isso.
— O senhor deve viver. — disse ela de um modo estranho — E eu também
devo. Nossos caminhos não se cruzaram por acaso... — ela ficou em silêncio por
um longo tempo e Espartakus temeu que não voltasse a falar. Sua voz soava para
ele como um flautim. — Penso que meus tempos de sacerdotisa possam estar
chegando ao fim.
— O que quer dizer com isso? — ele perguntou confuso.
— Que talvez exista outro caminho para mim.
Ele novamente fez que ia se virar, mas se conteve relutante.
— Deixe-me vê-lo. — pediu ela. — Eu gostaria de conhecer verdadeiramente
os seus olhos, embora já conheça seu coração.
Espartakus se sobressaltou e virou-se devagar, mantendo a cabeça baixa.
Então a olhou e a ternura daquele semblante o invadiu e jorrou em seu peito,
inundando-o com calor. Ele não podia conter o desejo de tocá-la, mas o conteve
com dignidade. Seu coração estava em uma sintonia descompassada. Kara, embora
doce, tinha um olhar ao mesmo tempo cauteloso e sagaz e observava cada
movimento que ele fazia, sempre com curiosidade.
— Vamos falar sobre o futuro. — disse ela. — Agora que a situação de
Lakar foi contornada.
Espartakus assentiu confuso e esperou, confiando nela.
— O senhor está em perigo. — tornou Kara. — Não poderemos esconder por
muito tempo o que aconteceu aqui e, se ficar em Lakar, poderá ser perseguido
pelos clérigos. Acredite, sua ira é tão implacável quanto sua devoção no que
diz respeito às tradições. E, no momento, estou quebrando todas as regras.
Curá-lo foi uma afronta sem precedentes aos preceitos do Templo do Único. Mas a
culpa maior recairá sobre o senhor.
— Então novamente a atinjo, colocando-a em perigo. — Espartakus se
lamentou.
— O senhor não ouve o que digo. — disse ela desapontada.
— Venha comigo! — disse ele, como se não a houvesse escutado — Vamos
embora daqui.
— Espartakus. — ela pronunciou o nome com tal intensidade que ele ficou
paralisado. — Deixaria tudo o que tem para fugir comigo?
Ele a fitou por um momento como se tivesse escutado a maior insanidade,
mas, aos poucos, assumiu o controle de si e, reunindo forças, disse:
— Sim. — quando acabou de pronunciar a palavra, sentiu como se ela
quisesse ouvir o contrário.
A sacerdotisa realmente achava que deveria ouvir o contrário, mas não
pôde controlar as batidas de seu coração enquanto contemplava os olhos do filho
do ferreiro e via neles a mais pura sinceridade. Ela se delongou observando e
percebeu que Espartakus se aproximava, então se afastou de súbito.
— Não é o momento. — disse de uma vez. — Não ainda. — prosseguiu
recompondo-se. — O senhor não está pronto. Precisa se preparar. E eu preciso
voltar e me assegurar de que não desconfiarão, por ora, de sua partida, nem
tampouco de sua recuperação. Devo arcar com meus crimes e me purificar... Mas
estou certa de que nos veremos de novo.
— Senhorita, eu... — começou Espartakus.
— Nobre, Kara. — ouviram a voz de Aiorius chamando de fora da tenda.
Espartakus se sobressaltou e virou-se para o outro lado.
XXXI.
— Venha, senhor Aiorius. — chamou Kara, vestindo novamente o elmo. — Ele
está recuperado.
— Ótimo. — disse Aiorius. — Então já podemos partir.
Espartakus o mirou com uma interrogação e quis ver o rosto de Kara para
saber se eles haviam combinado aquilo, mas não se voltou.
— O problema de Lakar está resolvido, pelo menos por enquanto, mas você
não pode ficar aqui, Espartakus. — tornou Aiorius. — Se souberem que a
sacerdotisa o curou, virão atrás de você. E certamente ela também terá
problemas. Receio que o senhor não tem escolha.
— Compreendo... — disse ele. — Farei o que for preciso. Irei onde puder.
— Você virá comigo. — voltou o clérigo — Precisará aprender algumas
coisas para se defender. Além disso, acredito que tenha alguns motivos para
querer me ajudar na questão dos membros da Ordem da Sombra.
— Sim, tenho. — assentiu Espartakus. — E lhe agradeço.
— Permitirei que se despeça de seu pai. — prosseguiu Aiorius — Os demais
devem pensar que morreu ou se perdeu.
Espartakus assentiu silencioso, pensando, destruído, em sua mãe e irmãos.
Mas em seu coração prometia a si mesmo que se tornaria forte o bastante para
voltar a Lakar algum dia e reparar mais esse erro. E pensou em Kara com
inevitável fascínio e na possibilidade de olhá-la novamente algum dia, mesmo
estando ciente do desrespeito ao juramento que fizera no Templo do Único.
E então Kara se retirou em silêncio, mantendo a cabeça baixa e o rosto
coberto. Aiorius chamou o velho ferreiro para dentro da tenda e Espartakus desabou
de emoção. Pai e filho se abraçaram e choraram. Enquanto se despediam, o
clérigo e a sacerdotisa conversaram longamente do lado de fora da tenda. Ao
amanhecer, nem Aiorius, nem Espartakus, nem Kara foram vistos em Lakar.
Fim. Por enquanto...
ResponderExcluirEstou sentindo cheiro de romance no ar........ Será que Espartakus e Kara vão se entregar a paixão?!
Kara pensa que os caminhos de ambos não se cruzaram por acaso e tem certeza de que os dois se reencontrarão novamente. Veremos o que acontece quando eles se reencontrarem...
ExcluirEssa história se impõe em minha mente e não vejo a hora de moldá-la e recriá-la no papel. Certamente ainda virá uma continuação! Fique de olho! E obrigada por ter nos acompanhado até aqui.
Muito boa a história! espero poder ler mais em breve.
ResponderExcluirQue bom que gostou! Obrigada pela leitura. Logo teremos novas histórias. Fique de olho!
ExcluirAchei que haviam arrancado seus olhos e estourados seus tímpanos e cortado sua língua... De fato acho que deveria publicar 2 capítulos por semana.
Excluir:) kkk acho que foi um pouco menos drástico, né? Espero um dia conseguir soltar dois por semana...
ExcluirQuando será publicado novo conteúdo? Estou ansioso por mais.
ResponderExcluirOlá! Em sua homenagem, acabo de postar um novo conto. :) Dê uma olhadinha em "A carta", espero que goste! Estou em uma pequena viagem de férias, mas voltarei à ativa em breve. Obrigada pela leitura.
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