À porta.

"À porta" é um conto de minha autoria que foi publicado pela Faculdade de Letras da UFMG em 2014. Tenho um carinho particular por esse texto, pois foi meu conto de estreia no campo das publicações literárias. Segue a referência do livro onde ele pode ser encontrado:

À porta. In: Diretório Acadêmico Carlos Drummond de Andrade. (Org.). II Concurso Literário Travessia. 1ed. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2014, p. 88-90.



Esta história não apresenta relação com o mundo de Arcaries, mas aproveite a leitura enquanto aguarda por mais novidades dessa terra misteriosa.



À porta


Uma jovem mão segurava a maçaneta da porta, frias ambas. O formato elíptico do metal brilhante se emoldurava sob o delicado toque. O dourado se destacava na palidez quase transparente da pele úmida. Dedos longos, trêmulos, faziam uma pressão insignificante e o mecanismo reagia com uma dureza ainda mais gélida, fechado, insensível. Apesar da insignificância do contato, não havia uma só terminação por todo o corpo da jovem que não respondesse àquele toque. Aquilo provocava uma efervescência de emoções outrora tão cuidadosamente contidas, agora estourando num turbilhão como um carnaval de cores. Cores sombrias.
Em torno, os miúdos olhos ofuscados fitavam as lembranças de um tempo que não era este. Ali, naquela cadeira de balanço, se sentava ele. A imagem que a mente contemplava era a dos cabelos grisalhos e a barba por fazer e aqueles olhos tão profundos... Olhos que, no fim, apenas se abriam para o vazio. A não-emoção, a não-vida. Os outros diziam que os dois eram parecidos. Eram? Nem sabia, nunca tinha notado. Também não sabia por que se lembrava dos olhos ou de qualquer outra coisa. Por que ele lhe aparecia agora? Devia querer continuar fazendo-a sentir...
O rangido das molas da cadeira de balanço ressoava pelo ar e agredia seus ouvidos concentrados no silêncio. Eterno chiado na muda língua de seus ancestrais. A pressão na maçaneta aumentou. Os dedos incontidos agora se moviam quase em frenesi. Poderia abrir aquela porta e alcançar o nada além do nada de cá. Mas ele não estaria lá. Ele também não estava aqui! O medo. Bastava pressionar com mais força e... A dúvida. O imperativo de sua existência.
Um arrepio funesto percorreu seu corpo. A sombra ainda estava nela. A sombra que a aprisionara, que vencera seus sonhos, que a deixara na encruzilhada. Se pudesse gritar... Era forte o impulso de se mover; a agitação, crescente como uma nota que trespassava o peito.
A janela de madeira ainda estava no mesmo lugar, fechada, lacrada, impedindo que seus olhos escapassem para a noite impenetrável. Seria mesmo noite? Seus sentidos não podiam ir além daquela sala-cela, onde a nuvem de lembranças a envolvia com a dureza de uma pluma afiada, transbordando sua alma insana do calabouço onde a mantinha aprisionada, forçando-a a olhar para tudo de novo. A pressão na maçaneta foi intensa, mas não suficiente. A outra mão se ergueu para o peito, que subia e descia. O contato dela própria trouxe-lhe a imagem do toque frio de um punhal. A surpresa provocou uma parada súbita no intermitente respirar e sobreveio um momento de alento. Por um instante foi a imagem da estátua esculpida na rocha fria, sem o pesar dos pensares, sem a fugidia ilusão do porvir, nem o desamparo que precede o fim, apenas com a fugaz esperança do apagamento total.
Mas ela voltou.
Como se uma cortina de pó lhe fosse atirada aos olhos, sentiu neles uma ardência e, aparentemente, a irritação os fez transbordar, regando seus dedos já úmidos. Seria muito difícil conter aquele impulso. Do lado de fora poderiam ouvir o ranger dos maxilares pressionados? O estouro de sentimento que escapava esbaforido? Um gemido? Era preciso sentir alguma coisa, ele diria. Mas ele não estava mais ali.
A TV, sobre a mesinha, já não era a mesma. Mas a nova era como a antiga, só rejuvenescera a casca e continuara ali no mesmo lugar, ajuntando pó, compondo o ambiente, às vezes funcionando, às vezes constituindo a melodia do silêncio. Uma coisa ainda se ouvia: o noticiário, um blá-blá-blá intermitente, e, renovado, o rangido do balançar da cadeira de palhinha. O que podia haver de significante no mundo se o mundo era aquela sala?
O aperto dessa vez foi mais intenso; contraiu-se sobre si mesma, o peso da dor mais forte que a gravidade. A maçaneta foi um apoio e ainda assim não cedeu à pressão do toque. Os joelhos tocaram o capacho que ainda recolhia para dentro todas as noites mesmo sem ameaça de chuva. O toque áspero podia arranhar a pele sensível, mas não arranharia o selo com que ela bloqueava o mundo. Tudo devia ficar de fora. A proximidade era um perigo, podiam descobrir o que era de verdade. Mantida seria indefinidamente aquela tênue linha de proteção invisível, barreira intocada do mais puro concreto. Era uma convicção? Não, repetia, era o movimento imposto por sua essência. A única máscara possível dentre todas as faces. Para ele, a perpétua ruína.
Outro estouro incontido escapou-lhe dos lábios. Os olhos embaçados já não viam a sala ao redor, fitavam apenas as gotas que caíam contra o cinza árido e sem vida que continuava arranhando a superfície da carne. Os cabelos desgrenhados, caídos por sobre os ombros, grudavam no rosto reclinado. A mão livre tentava arrancar os fios do tapete como uma vingança. Uma brisa soprava por debaixo da porta trazendo a presença do mundo.
Ninguém podia impedir aquele sopro insuportável? Ia gritar para que parasse. Ia fazê-lo parar para sempre. A pressão da mão foi a mais forte e a maçaneta cedeu. Moveu-se para baixo com um baque, mas voltou à sua posição. Estava trancada. Os dedos da jovem, que relaram na superfície áspera da porta, pararam de pressionar e escorregaram para o tapete, derrotados.
Suspiros e soluços. Cansaço. Os olhos parados em estupor. E o tempo indomável, governante impiedoso. A nada devia ser dado o direito de tudo interromper...
Ela já não ouvia o balançar da cadeira, já não ouvia o noticiário. Já nem se dava conta da janela fechada. As sombras cercavam tudo, mas o velho moinho continuava a coletar e a despejar a água de volta ao rio.

Fim.

Comentários

  1. Que belo conto! Você é uma escritora muito talentosa, parabéns.

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    1. Muito obrigada pelas palavras de incentivo! :) Que bom que gostou. Na semana que vem teremos mais novidades.

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  2. A riqueza de detalhes é impressionante....fascinante !

    Parabéns !

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  3. Este é um conto interessantíssimo, repleto de figuras simbólicas, de segredos e de tensão crescente. Os teus trabalhos são deveras surpreendentes e tão variados nas suas formas e conteúdo.

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    1. Que bom que gostou, Carlos Eduardo! Obrigada por me dedicar seu tempo e me presentear com o carinho de seu comentário. A cada leitura, sinto que o trabalho vale a pena. E esse conto é particularmente especial para mim...
      Não deixe de visitar o blog e conferir as novidades! ;)

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