Pactos. Entre justos e pecadores. Parte 4
XX.
O tempo passou, não tendo Espartakus podido calculá-lo, afinal não
chegava qualquer raio de sol até aquele abismo sombrio e ele estava muito
ansioso e preocupado com seus problemas. De repente, abriram a porta e o
chamaram.
Conduziram-no até a sala do Conselho, no primeiro andar, na parte frontal
da torre. Era um saguão amplo, iluminado por tochas e pela luz do sol. Ali tudo
era sóbrio, desde os móveis escuros até a cor das paredes. Não havia decoração
além das tochas e castiçais. Cada um dos presentes se sentava diante de uma
espécie de púlpito, todos voltados para o mesmo lado, à exceção de um. Este
estava à frente de todos e, diante dele, Dúkar se sentava. Agora o chefe se
cobria por um aveludado manto escarlate, além de adornar-se com novas joias
brilhantes.
À esquerda do púlpito principal, havia uma cadeira em um local de piso
ligeiramente rebaixado, diante da qual se erguia uma pequena cerca de madeira,
à guisa de parapeito. Espartakus foi mandado a este assento e a seu lado se
postaram dois guardas. Quando se sentou, Espartakus notou que, à direita, na
diagonal, havia outro púlpito ligeiramente maior que os outros e, frente a ele,
se sentava Kara. Ela tinha a cabeça coberta e, na posição em que estava, embora
pudesse ver todo o salão, ninguém podia olhá-la diretamente. Ele foi prudente e
evitou aquela direção assim que a viu.
— Saúdo-os, meus irmãos, em nome do Único. — disse o velho em tom solene
— Que minhas decisões sejam suas decisões e que minhas palavras sejam suas
palavras, eu, chefe Dúkar, líder deste Conselho.
Todos se levantaram e fizeram uma reverência ao líder, à exceção de Kara,
a sacerdotisa, que apenas se levantou. Espartakus notou que Aiorius foi
bastante sutil ao reverenciar o chefe Dúkar, os demais se dobraram
exageradamente, na opinião do rapaz.
O moço percebeu ainda que não havia rostos conhecidos dentre os
conselheiros. Aparentemente, nenhum daqueles homens nunca antes havia estado em
Lakar para as cerimônias dos aldeões, pelo menos não que Espartakus se
lembrasse.
— Estamos aqui reunidos, — começou Dúkar — pois nos coube a dura tarefa
de julgar os atos do homem que se declarou Espartakus, de Lakar. — fez um gesto
na direção do rapaz — Ele procurou o Templo, nesta mesma manhã, e, mesmo tendo
recebido o benevolente conselho de retornar em momento mais propício, ousou
saltar a muralha e invadir este solo sagrado, contra a vontade do Único e de
seus preceitos. — ouviram-se alguns sussurros. Dúkar elevou a voz: — Além
disso, ele mirou a face de Kara, desrespeitando-a e a esta Ordem Sagrada, e
dirigiu-lhe a palavra. — disse ele. Alguns homens se entreolharam de olhos
arregalados e sobrancelhas soerguidas. Alguns murmúrios percorreram a audiência.
Enquanto esperava ter novamente a atenção de todos, Dúkar sustentava um olhar
sério. — Esses são os fatos. — ele prosseguiu — E, de acordo com nossas leis,
há dois crimes passíveis de punição. Mas, antes de julgarmos o herege, vamos
ouvi-lo, conforme preceitua o Livro Antigo. — terminou a frase tocando um livro
amarelado que estava sobre o púlpito a sua frente e voltando-se para a
assembleia.
Espartakus esperou. O chefe então se virou para ele:
— Seus crimes foram relatados diante do Conselho. — disse Dúkar — Você os
nega ou deseja apresentar alguma prova que não o desabone?
Espartakus puxou o ar e levantou-se.
— Para defender-me dos crimes dos quais me acusam, preciso contar minha
história para o que peço sua paciência. — disse o rapaz de modo cortês, tentando
manter a calma. — Antes de mais nada, porém, com relação à acusação que envolve
a sacerdotisa, preciso dizer que eu não sabia de quem se tratava, pois nunca a
tinha visto. Se falei com ela, foi apenas para apresentar-me e declarar minhas
intenções, que são verdadeiras, como poderão verificar. Então, se houve um
crime nesse caso, foi completamente involuntário. Nunca tive a intenção de
macular esta Ordem Sagrada, a sacerdotisa ou qualquer dos devotos do Único,
dentre os quais me incluo. E peço que isso seja levado em conta.
— Sem dúvida. — disse Dúkar. — Vamos considerar. Prossiga.
— Não nego que tenha saltado a muralha, mas não o fiz com a intenção de
desrespeitar este solo ou os que aqui habitam. Como anunciei ao guarda que
deteve minha entrada, só o que busco dos sábios devotos do Único é auxílio para
os que necessitam e que se encontram em condição tão miserável que inspira atos
de desespero.
“Os membros da Ordem do Culto da Sombra atacaram e dominaram o povo de
Lakar.” — Espartakus decidiu usar a informação que obtivera de Aiorius, mesmo
sem saber ao certo se era correta. A estratégia funcionou, pois, ao mencionar o
nome, notou que houve uma intensa troca de olhares e cochichos. — “Eles
escravizaram os aldeões de modo que todos trabalham para produzir alimentos e
armas que irão abastecer seu exército.” — improvisou mais uma vez. — “Eles
exigem muito e, possivelmente, a produção será grande, por isso suponho que não
estejam apenas acumulando para uso imediato, mas para algum outro propósito. E
essa situação já dura cerca de dois meses. Muitos de Lakar já morreram e outros
estão morrendo. Os invasores não estão em grande número, porém os nativos não
são um povo guerreiro e estão subjugados por duras ameaças e por atos
exemplares que os saqueadores não se cansam de praticar a fim de manter a ordem
que impuseram. O povo está desmotivado e prevê a morte em cada passo. Ninguém no
povoado tem forças para reagir diante da tremenda crueldade demonstrada pelos
cultuadores da Sombra. Já faltam alimentos e, logo, eles terão tirado tudo que
temos.”
Espartakus suspirou e fez uma breve pausa para olhar em torno. Depois
prosseguiu:
— Não trouxe nenhuma prova comigo além de minha palavra, mas se forem até
o povoado constatarão a situação que relatei. O povo de Lakar sempre foi
pacífico e contribuiu de bom grado para a manutenção deste Templo, oferecendo
sua devoção e o fruto de seu trabalho como oferenda, bem como o seu respeito
aos clérigos e aos preceitos. Por isso imagino que sejamos merecedores de sua
benevolência a qual, não duvido, seja sua causa maior. E em busca dela
peregrinei até aqui na intenção de alcançar a libertação de meu sofrido povo.
Fui abençoado pelo Único em meu caminho uma vez que logrei chegar praticamente
ileso ao meu destino. Peço que isso também seja levado em conta.
— De fato. — disse Dúkar. — Você foi protegido, mas me parece que abusou
da sorte que lhe coube. — ele encarou o rapaz pensativamente — Você não fala
como um herege, no entanto nem todos os fins podem justificar os meios. Podemos
compreender seu desespero e a vontade de ajudar seu povo, mas, uma vez assumido
o risco de lidar com o desconhecido, deveria saber que nem todas as coisas que
ocorrem são fruto de nossa escolha.
Houve uma longa pausa durante a qual Espartakus esperou apreensivo. Nesse
tempo, o rapaz viu-se desejando contemplar o rosto da sacerdotisa e descobrir
nele o seu crime, mas não ousou tentar mirá-la. Encarou, por sua vez, um por um
os clérigos, procurando indícios de adesão à sua causa. Eles estavam atentos a
seus movimentos e pareciam refletir sobre o que tinham ouvido, mas não
transpareciam intenções. Também não demonstravam ter o propósito de falar
qualquer coisa. Espartakus notou ainda Aiorius, aos fundos da audiência, com um
olhar compenetrado. Quando se fixou novamente em Dúkar, este disse:
— Quando escolheu saltar a muralha, o destino o pôs diante de nossa
sacerdotisa. E, para o crime contra ela, não é previsto perdão. Precisamos
estipular uma pena justa, mesmo que isso nos desagrade.
— Também precisamos pensar na situação de Lakar. — disse Kara,
erguendo-se; a voz ecoando pelo salão como um sopro de mel. — Não vejo neste
homem a intenção de produzir o mal nem percebo nele o ardil dos que tecem
argumentos mentirosos. O povoado de Lakar era habitado por homens livres que
sempre nos serviram com dedicação e veneraram o Único com grande respeito, e
Espartakus faz parte desse povo. Suas feições, suas vestes, o modo de falar não
nos deixam dúvidas. Por isso ele merece nossa consideração. Por isso e por ter
nos trazido notícias de tamanha importância. Agora sabemos que os cultuadores
da Sombra estão agindo outra vez. E não podemos deixá-los atuando impunemente.
Conhecemos muito do mal que já produziram e me parece que, de fato, algo pode
estar sendo preparado por eles. É nosso dever impedi-los.
— São sábias suas palavras, nobre Kara. E sabemos que o conhecimento gera
obrigações... — disse Aiorius — Eu diria ainda mais, diria que devemos
descobrir o que os da Ordem da Sombra estão preparando e alertar os reinos que
poderiam combatê-los. — fez uma pausa e fitou o chefe do Conselho. — Penso que
meu tempo entre os senhores chegou ao fim.
— Sim, senhor Aiorius. — Dúkar fez-lhe uma ligeira reverência — Seu
caminho é livre para o que desejar, embora nos agrade tê-lo em nossa companhia.
Sabíamos que este momento chegaria e agradecemos o conhecimento que partilhou
conosco durante o tempo que esteve aqui.
— Obrigado. — disse Aiorius reverenciando-o também. — Realmente preciso
coletar mais informações sobre os planos dos membros da Ordem da Sombra. E vou
começar investigando em Lakar. Caso seja conveniente a este Conselho, penso que
poderia levar Espartakus comigo de volta ao povoado e me assegurar de que ele
não retorne a este Templo nem fale sobre o que aconteceu aqui.
Espartakus fitava o clérigo de Teles com admiração.
— A ideia não é ruim, senhor Aiorius. — disse Dúkar — Sua palavra, assim
como sua ajuda, são muito valiosas para nós. Mas, respeitosamente, penso que
nosso problema com este rapaz precisa ser resolvido de modo definitivo. — ele
se voltou para Espartakus — Precisamos evitar que a mancha de seu crime nos
destrua. Há leis que não podem ser ignoradas...
— Ele foi tomado por uma sorte ruim ao pular a muralha do Templo. — disse
Kara — E, infelizmente, um crime levou a outro. Mas Espartakus não demonstra o
desejo de infringir regras ou macular costumes. Além disso, tem uma nobre
motivação. No que me cabe, sou capaz de perdoá-lo.
O coração de Espartakus disparou. Ele voltou-se para Dúkar e viu que o clérigo
o olhava de volta atentamente.
— O coração bondoso de nossa sacerdotisa fala em seu favor, mesmo tendo-a
desrespeitado. — disse Dúkar com um olhar indecifrável e num tom gentil. — No
que condiz com as tradições e por tudo que ouvimos, penso que podemos propor
que seja poupado da morte. — declarou ele, fazendo uma pausa e olhando em
torno. Ninguém o contestou, apenas trocaram olhares e sussurraram suas opiniões
uns com os outros. — Porém, o que você viu, Espartakus, é proibido a olhos
humanos. E esse ponto não pode ser ignorado sob pena de um grande mal se abater
sobre nós... A má sorte acompanha aqueles que desrespeitam o que tomam por
sagrado e banalizam o que sempre consideraram correto. — sua voz adquiriu um
tom mais profundo — Uma pena tem de ser aplicada... — terminou ele baixando a
cabeça e segurando o queixo com uma das mãos, o outro braço cruzado no peito,
como se mergulhado em pensamentos.
Percebendo que, apesar da boa vontade da sacerdotisa e do clérigo
Aiorius, a situação poderia não sair muito favorável, Espartakus tentou
livrar-se de um mal maior:
— Senhor Dúkar, — disse em tom solene — coloco-me à disposição deste
Templo e prometo jamais falar sobre o que aconteceu aqui, tampouco tornar a
olhar a sacerdotisa ou sequer pisar este solo, caso seja poupado e consiga
ajudar meu povo a se livrar da Ordem da Sombra. Deixe-me ir a Lakar com o
clérigo Aiorius e ajude-me a libertar meu povo.
Dúkar o mirava compenetrado:
— Não pretendo impedir que qualquer um que deseje ajudá-lo de boa vontade
o faça. Pessoalmente não posso ir, mas peço que se manifeste quem tiver
intenção de fazê-lo.
Espartakus olhou em torno, esperando. Todavia algo em seu coração o
alertava para não ter muita esperança. E, de fato, os demais membros do
Conselho do Templo nada disseram. Diante disso, Aiorius se manifestou,
encorajando-os:
— Eu irei a Lakar, como disse. — falou ele — Se pelo menos mais um ou
dois clérigos pudessem me acompanhar, poderíamos oferecer a ajuda que
Espartakus necessita e recompensá-lo pela informação que ele nos trouxe,
arriscando sua vida na jornada.
Espartakus achava que Aiorius sabia mais do que lhe tinha contado e
agradecia, em seu íntimo, ao Único por sua boa vontade. Ao olhar em torno,
porém, viu que ninguém mais se moveu. O silêncio era completo.
Aiorius sentia a aura de Kara e a intensidade de sua aflição o feria.
Poderia ela estar querendo lhe dizer alguma coisa? Aparentemente, Dúkar também
percebera a presença mágica da sacerdotisa se modificando, pois se remexera
inquieto, após fazer um leve movimento em direção a ela. Mas logo o chefe moveu
a cabeça de volta ao púlpito, apoiando-se nele, subitamente preocupado. Parecia
um homem perigoso.
Dúkar conteve-se por um tempo, esperando. Aiorius também não arriscou qualquer
outra tentativa, pois julgava que já havia desafiado bastante o conselheiro.
Após longa pausa, como ninguém mais se manifestou, o chefe ergueu a
cabeça e disse:
— Pois bem. Assim seja. — declarou — Para garantir que este homem cumpra
sua palavra ao receber a ajuda solicitada, gentilmente oferecida pelo senhor
Aiorius, de Teles, e uma vez que seguirá, a partir daí, por sua própria conta e
não haverá vigilância por parte dos membros de nossa Ordem, será feito como
regem as leis. — fez uma pausa — Seus olhos contemplaram a luz mais pura,
então, de agora em diante, não mais poderão vislumbrar luz alguma; sua boca não
falará sobre o que viu nem sobre qualquer outra coisa e jamais será capaz de
reproduzir inverdades; e seus ouvidos serão poupados das blasfêmias humanas.
Esta é a lei. Por sua luz eu julgo e por sua prudência, condeno.
Espartakus, tomado de choque, caiu em seu assento e pôs-se a fitar o
chefe do Templo. As duras palavras caíram-lhe sobre os ombros com um peso
terrível e ressoaram em seus ouvidos com um poder destruidor. Tentou fazer com
que as batidas em seu peito diminuíssem e o ar voltasse a ser expelido, mas seu
esforço o enfraquecia ainda mais.
Quando imaginou que o desespero o dominaria, uma estranha onda de
serenidade o envolveu, acalmando seu espírito e clareando sua mente.
Involuntariamente seu coração se voltou para a sacerdotisa. Então, pensando em seus pais, irmãos e nas
pessoas de Lakar, reuniu toda sua coragem e declarou:
— Aceitarei resignado qualquer castigo que me imponham desde que meu povo
seja liberto do jugo da Ordem da Sombra.
Com surpresa, Dúkar o fitou. E ouviu-se novamente a voz de Kara:
— Este homem é digno, senhor Dúkar. — disse ela ligeiramente abalada — E
por seu sacrifício e pela vontade do Único, o povo de Lakar será salvo.
Assim encerrou-se, naquele dia, a reunião do Conselho do Templo do Único.
Continua...
Uai...como assim "Seus olhos contemplaram a luz mais pura, então, de agora em diante, não mais poderão vislumbrar luz alguma"...
ResponderExcluirVão arrancar seus olhos?
Espartakus tem que lutar até o fim!
Pobre Espartakus... Você acha que é punição demais para ele? Será que ele não terá como escapar de seu destino? O filho do ferreiro terá forças para lutar? Confira na parte final na semana que vem!
ExcluirEstou curioso para saber como acaba
ResponderExcluir:) Confira a parte final na semana que vem!
ExcluirContinuo achando que Kara o salvará. Veremos!
ResponderExcluirUhm... Será?... De fato a magia pode atuar de muitas formas e Kara é sábia. Vejamos o que ela poderá fazer.
Excluir... A sacerdotiza irá salvá-lo e Spartacus irá com Aiorius para Lakar. Ele não perderá nenhum dos sentidos mas será obrigado a servir o único no que quando e como prouver. Aguardando o próximo capítulo...
ExcluirA quinta parte já está no ar! Confira se suas previsões se confirmaram! ;)
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