Pactos. Entre justos e pecadores. Parte 3

XIII.
Após demorar-se o suficiente diante do portão como se tivesse alguma esperança ou se, resignado, estivesse fazendo suas preces para partir, espiou a região e tomou o caminho de volta, rumo ao sul. Descendo pelo campo gramado, afastou-se o suficiente, sem se voltar. Quando já estava longe o bastante, interrompeu a marcha e olhou para trás. Analisou cuidadosamente a possível vigilância do Templo e tomou um caminho tortuoso pela direita, subindo o morro de volta.
Alcançou a muralha pela lateral, longe do portão de entrada, e seguiu acompanhando sua borda em direção a um ponto mais ao norte. Ali parou e olhou para cima. Havia mais de sete metros entre o chão e o topo do muro, e Espartakus calculava suas chances de chegar até o alto com um pedaço de cipó que levava na sacola de viagem. Ele improvisou a fixação de um gancho à ponta do cipó e, mirando cuidadosamente, atirou-o para o alto, prendendo-o à parte superior da muralha. Testou a firmeza da corda e a capacidade de suportar seu peso, então começou a subir.
Atingiu as ameias e, cauteloso, lançou um olhar em torno, procurando vigias. Muitos metros separavam a muralha externa da alta torre e era possível perceber que, na parte frontal do terreno, havia um largo pátio cujos contornos completos Espartakus não podia divisar daquela posição, porém via que alguns guardas armados caminhavam por ali.
No alto da torre, havia ainda outros homens, mas eles aparentemente não se fixavam em Espartakus. Do ponto em que o rapaz estava não enxergava o portão e, torcendo para que a situação fosse recíproca e não o enxergassem de lá, decidiu mover-se depressa.
Ele jogou-se sobre a muralha e, mantendo-se abaixado, avançou até a parte posterior do Templo onde havia um jardim com plantas ligeiramente amareladas, queimadas pelo frio. Nele havia uma ou outra flor mirrada e nada mais. Daquele lugar, lançou um olhar à edificação, verificando se seria seguro descer diante de todas aquelas janelas com seus vitrais escancarados, mas logo decidiu que teria de arriscar. Agilmente, prendeu o gancho e lançou-se à corda pelo lado interno da muralha.
Mal acabava de recolher seu pedaço de cipó em meio ao jardim, quando escutou vozes femininas se aproximando. Enfiou depressa a corda na sacola e, não tendo mais o que fazer, esperou junto do muro.
XIV.
Cinco mulheres vinham em sua direção conversando educadamente. Estavam distraídas e, aqui e ali, interrompiam a marcha e apontavam algum detalhe no jardim. Uma delas, uma mulher jovem de rosto fino e corpo desenvolvido, usava uma longa túnica branca que cobria todo o seu corpo, atada, na cintura, por uma faixa prateada e parcialmente coberta por uma capa também branca. Ela levava ainda uma corrente ao pescoço, onde havia um pingente cujo brilho refletia o sol em sua face pálida. Seu cabelo negro aparecia sob o enorme capuz branco que lhe caía sobre a cabeça e encobria parcialmente seu rosto porque ela mantinha a cabeça baixa. Enquanto esta calçava sandálias, as demais usavam trajes rústicos e seus pés tocavam o chão. Duas delas eram ainda jovens, quase meninas, as outras, idosas.
Quando notaram Espartakus, estacaram em seus lugares, encarando-o com perplexidade. As duas mais jovens deixaram escapar gritinhos assustados e correram. As mais idosas olharam preocupadas para a última e, notando que ela fitava, com curiosidade, o desconhecido – embora mantivesse os olhos baixos sob o capuz – e percebendo que ele, por sua vez, a fitava de volta, entreolharam-se e, deixando um olhar de aviso para a companheira que restara, afastaram-se apressadas rumo aos fundos do Templo.
XV.
— Imagino que não tenha sido convidado... — disse ela quando as outras se foram. — Quem é você e o que pretende fazer aqui? — perguntou com autoridade. Apesar da dureza com que atirara o comentário e a pergunta, Espartakus notou um toque suave em sua voz, o que estranhamente o acalmou.
— Sou Espartakus. — disse ele simplesmente, sem hesitar. — Vim em busca de ajuda para minha família e meu povo. De fato, não fui convidado, mas não pretendo causar nenhum mal.
— Já causou um tremendo mal a si mesmo e lamento muito por isso.
— O quê? — disse ele confuso. Ela estampava desconfiança, mas, após algum tempo, Espartakus viu algo mudar em sua face. Ele não tinha ideia de que tipo de força estranha o prendia àquele rosto sereno e parcialmente coberto pelo mistério. — Não sei do que...
Ele interrompeu-se, pois ambos escutaram um ruído de passos distantes e se sobressaltaram. Ela voltou-se, dando-lhe as costas. Fez que ia embora, mas hesitou. Por fim, virou-se em sua direção:
— Vá agora! — disse ela com intensidade. — Se dá algum valor a sua vida, volte por onde veio e não deixe que o encontrem!
— Eu não posso! — disse ele assustado, porém cheio de determinação. — Por incrível que pareça, esse lugar é minha melhor chance de salvar meu povo do jugo daqueles que atacaram o povoado de Lakar e escravizaram a todos.
Enquanto ele falava, ela deu-lhe as costas. Os passos se aproximavam.
— Por isso preciso de sua ajuda... — insistiu ele sem esperança.
— Peço que saia agora enquanto há tempo. — ele ouviu a voz baixa e urgente da mulher, mas não se moveu.
XVI.
Três homens surgiram no jardim. Um deles era alto e idoso, tinha a barba aparada e o rosto ligeiramente enrugado. Vestia-se com uma túnica da mesma fazenda que a da mulher e ostentava várias joias douradas. Seu semblante era duro. Um de seus companheiros era um homem feito, porém jovem, de porte também alto, no entanto mais robusto. Trajava uma túnica acinzentada e tinha os cabelos castanhos bem penteados. Olhava com serenidade e sabedoria, embora tivesse o rosto sério. O terceiro, mais franzino e de meia idade, também usava uma túnica e vinha armado com um arco e apontava uma flecha em direção a Espartakus. Estranhamente este foi o que menos preocupou o rapaz, que se fixava no sujeito idoso. O velho encarou Espartakus com dureza e então se voltou para o sujeito com o arco:
— Leve-o e prenda-o. Depois reúna o Conselho e conduza-o até mim.
O arqueiro assentiu e, ameaçando com a flecha, fez um gesto para Espartakus. O rapaz, porém, não se moveu.
— Este homem não causou nenhum mal! — interviu a mulher com a voz cristalina, ainda com o rosto voltado para o outro lado e encoberto pelo capuz.
— Não se preocupe, nobre Kara. — disse o velho — Vamos interrogá-lo e cuidaremos de fazer por ele o que for justo.
O arqueiro o pressionava a caminhar, porém Espartakus encarava o homem velho:
— O senhor é o chefe Dúkar?
— Sim. — respondeu o outro após observar o rapaz atentamente.
— Vim à sua procura... — começou Espartakus.
— Tenha paciência, rapaz. — interrompeu o chefe. — Ainda lhe será dada a oportunidade de falar, caso coopere.
Espartakus assentiu relutante e se viu tendo de caminhar sob a mira da flecha.
XVII.
Dúkar seguiu os passos do arqueiro e, antes de acompanhá-los, a mulher de nome Kara deteve o homem mais jovem, esperando que os outros se afastassem:
— Senhor Aiorius. — disse ela de modo confidencial — O rapaz me disse que o povoado de Lakar foi atacado e o povo, escravizado. O senhor soube disso?
— Não, senhorita Kara. — respondeu o homem pensativo — Essa notícia não chegou até mim. Ele tem alguma prova?
— Não. — ela respondeu rapidamente. — Não sei... — corrigiu-se — Não tive tempo de perguntar.
— Não devia ter falado com ele, senhorita Kara... — disse o outro com ar preocupado, porém compreensivo.
— Não tive escolha... Ele precisa de ajuda. O senhor falaria com ele?
— Vou ver o que posso fazer.
XVIII.
Kara e Aiorius apressaram-se e seguiram os demais. Espartakus foi conduzido pelo jardim e o fizeram adentrar a torre pelos fundos. Algumas mulheres remexiam a terra de um canteiro de hortaliças à direita e pararam para olhá-lo. Outros guardas vieram ao encontro do arqueiro e, mantendo as cabeças baixas, se juntaram à comitiva silenciosa que escoltava o rapaz. Rapidamente tiraram-lhe seus pertences e o revistaram em busca de armas. Nada encontraram a não ser o martelo de ferreiro, a machadinha de cabo curto e uma pequena adaga.
Os fundos da edificação eram compostos por repartições cheias de apetrechos de jardinagem, sacos de sementes, feno e adubo. Passando rapidamente por isso, um homem que se juntara a eles adentrou uma passagem lateral e desceu ao subsolo, conduzindo o grupo armado que levava Espartakus. Os outros não vieram.
O lugar era úmido e sombrio e, após descerem pela escadaria, cruzaram um longo corredor até chegarem a um cômodo pequeno no qual mandaram Espartakus entrar e trancaram a porta. Ali não havia móveis nem janela e o chão era de terra batida. O ar entrava apenas por uma abertura gradeada ao alto da porta. O coração de Espartakus ficou apertado e ele se perguntou quanto tempo teria de ficar naquele lugar. As palavras da mulher ressoavam em seus ouvidos, levando-o a refletir sobre que tipo de pessoas seriam, realmente, os clérigos do Templo do Único e o que poderia esperar deles.
XIX.
Algum tempo se passou até que a porta de sua prisão se abriu e Espartakus viu entrar o homem jovem da túnica acinzentada.
— Olá, Espartakus. Sou Aiorius, de Teles. — ele se apresentou com cortesia.
— Olá, senhor Aiorius. — respondeu Espartakus com a maior simpatia que sua condição lhe permitia.
— Você cometeu um erro grave, meu rapaz. — anunciou ele, porém sua voz não continha repreensão e sim um tom de alerta.
— Não me deixaram entrar, disseram que não me receberiam, então eu transpus a muralha. Não entendo como isso pode lhes parecer tão grave. Apenas desejo falar com os clérigos e expor o meu pedido. Não vim para causar nenhum mal. Sou um devoto.
— Você está falando com um clérigo. — disse Aiorius — Embora eu não seja daqui e não tenha autoridade neste local. Vim apenas atender ao pedido da sacerdotisa. — neste momento o homem interrompeu-se e observou Espartakus com atenção. O rapaz o fitava com os olhos arregalados.
— Não me diga que a jovem mulher com quem falei era a sacerdotisa?
— Sim. — respondeu Aiorius — Você não sabia, mas não podia ter falado com ela.
Espartakus encolheu os ombros, lembrando-se de que fora ela quem primeiro lhe dirigira a palavra, mas preferiu não mencionar o fato. Relembrou algumas histórias que ouvira sobre as tradições do Templo do Único e sobre a sacerdotisa que não podia sequer ser olhada.
Pelo que se dizia, a tal sacerdotisa era confinada às paredes frias do interior do Templo e a nenhum homem era dado o direito de ver nenhuma parte de seu corpo, sequer seus olhos. Só podiam olhá-la a distância e enquanto estivesse usando o capuz sob o rosto. Suas aias a acompanhavam todo o tempo e só se separavam quando ela estava na companhia de algum dos clérigos a quem era dado o direito de dirigir-lhe a palavra. Ela representava o ideal máximo de pureza do culto do Único e merecia todas as honras dos devotos, os quais lhe ofereciam presentes quando logravam alcançar o fim de suas jornadas.
Sabia-se que Kara era humana e que fora consagrada, ainda bebê, nas terras de sua família em Duegom e, desde então, ela habitava o Templo na companhia dos clérigos e de seus servos. Até mesmo os magos elfos de Árcanum respeitavam a essência de sua sabedoria e de seu poder, honrando-a com seu reconhecimento.
— Ela me pareceu uma mulher como qualquer outra. — disse Espartakus, por fim, dando de ombros, tentando afastar os pensamentos.
— Não diga isso diante do Conselho. — atalhou Aiorius.
— Só o que quero dizer é perguntar se não pretendem ir em auxílio do povo de Lakar. — disse o rapaz aborrecido. — Mas vejo que estou em uma situação delicada.
Aiorius o fitou de um jeito piedoso que muito o incomodou, mas ele tentou não demonstrar seu desgosto ao clérigo.
— Diga-me, senhor. — disse Espartakus não mais podendo conter a dúvida — Qual seria a pena para quem fala com a sacerdotisa sem permissão?
— A pena é a morte. — disse Aiorius — Não entenda mal. — prosseguiu diante da surpresa do rapaz — Os cultuadores do Único são pessoas de paz, embora possam ser um pouco severos em suas leis e regras. Mas não é sobre isso que quero falar. — interrompeu-se o clérigo. — Kara me disse que você afirmou ter sofrido um ataque. Do que se trata? Quem são seus invasores?
— Não sei muito sobre eles. — respondeu Espartakus com sinceridade — Sei apenas que são de fora, têm um sotaque diferente, são altos, ruivos, corpulentos e de olhos escuros. São muito cruéis. Terrivelmente cruéis... Ah, e alguns deles possuem uma tatuagem abaixo da nuca, como uma fumaça ou...
— Um raio. — completou o outro. — Um raio? — repetiu ele encarando Espartakus.
— Sim. — respondeu o rapaz vacilante diante da repentina urgência no olhar do clérigo — Acho que sim. Eu vi de relance e apenas algumas vezes. Parece que o símbolo desce pela coluna...
Aiorius, impaciente, esfregou o rosto.
— Fale mais sobre a invasão. — ordenou.
Espartakus então narrou tudo que acontecera desde o ataque com a maior quantidade de detalhes de que conseguiu se lembrar. E o clérigo exigiu saber mais, desde os mais insignificantes gestos até os sinais mais complexos, que o rapaz sequer notara antes de falar com Aiorius. Ele queria saber os objetivos dos invasores. Espartakus lhe disse, mais de uma vez, que não sabia o que eles planejavam, embora tenha dito que a primeira remessa de alimentos e armas, pilhada do vilarejo, tenha sido enviada a outro local.
— Talvez estejam preparando uma guerra... — arriscou o rapaz como não tinha mais o que dizer. — Meu pai foi ferreiro em Duegom e está fabricando armas para eles, contra sua vontade... — reforçou.
— Entendo... — tornou Aiorius — Você fala com sinceridade, embora eu receie que isso não seja suficiente para ajudá-lo... Diga-me: há quanto tempo o vilarejo foi sitiado?
— Há cerca de dois meses. — afirmou Espartakus.
Diante dessa informação, o outro ficou pensativo.
— Quem são eles, senhor? — Espartakus arriscou-se a perguntar. — O senhor sabe, não sabe? — insistiu diante do silêncio do outro.
— Acho que sim. — disse Aiorius. — Possivelmente seus saqueadores são membros da Ordem do Culto da Sombra.
— Ordem do Culto da Sombra? — repetiu Espartakus, experimentando as palavras a fim de ver se faziam sentido. — A Sombra é algum deus ou algo assim?
— Algo assim... — respondeu o clérigo com pouca disposição.
— Por favor, me diga mais sobre eles. — pediu Espartakus. — Meu povo precisa de mim.
— Escute, rapaz. — respondeu o clérigo ao mesmo tempo preocupado e comovido — Se eles forem, de fato, seus atacantes, algo grande pode estar sendo preparado e seu problema pode ser bem maior do que imagina. Por hora, deve saber apenas que os cultuadores da Sombra são um exército muito antigo que se opõe à Ordem dos Cavaleiros da Magia e aos Cavaleiros-Dragão.
Espartakus refletiu um pouco, tentando fixar o que aprendera e buscar na memória alguma informação ou referência sobre quaisquer das coisas a que o clérigo aludira, porém, sem sucesso. Ocorreu-lhe outra pergunta urgente:
— E os clérigos do Único são inimigos dos membros da tal Ordem da Sombra, senhor? — atirou preocupado, afinal, pensava que disso dependia seu futuro.
— Os daqui nada têm a ver com os da Ordem da Sombra. — respondeu ele captando a intenção do rapaz.
— Se isso é verdade, então não há motivo para esperar que eles ajudem Lakar?

— Não sei... Há motivos para que ajudem e outros para que não o façam... — continuou Aiorius pensativo. — Você será submetido ao julgamento do Conselho. — tornou o clérigo após algum tempo. — Apesar da boa vontade de Kara, prepare-se para o pior. — Com isso afastou-se e saiu, deixando Espartakus realmente desesperançoso e cheio de questões que não podiam ser feitas a ninguém.


Continua... 

Comentários

  1. um é bom ....dos é bom...e três é demais

    ate agora meu capitulo favorito!


    imagina o quarto então!?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que bom que gostou! Espero que o quinto te agrade mais ainda.
      Em breve o julgamento de Espartakus. Não perca!

      Excluir
  2. Respostas
    1. Que bom que gostou! Obrigada pela leitura. Continue por aqui acompanhando o desenrolar dos acontecimentos.

      Excluir
  3. Espartakus não morrerá, eu imagino. mas quem vai lhe salvar? a sacerdotisa?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Uhm... bons palpites... Mas será isso mesmo? Qual será o verdadeiro destino de Espartakus? Continue acompanhando!

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Pactos. Entre justos e pecadores. Parte 1

Saga das eras esquecidas completa!

A carta