Pé esquerdo

Sei que prometi um blog de fantasia e já faz tempo que não posto nada, mas essa história se impôs, não pediu licença e brotou de mansinho na mente...
Espero que gostem.

Pé esquerdo


Ana ia pela rua mancando. Mancava desde o acidente. Era algo simples, dizia o médico, um pequeno procedimento cirúrgico, depois o gesso e tudo ficaria bom logo. E ficou?

Ninguém esperava que esse gesso pudesse deixar seu pé esquerdo ligeiramente torto, mal encaixado no calcanhar. Ela nunca fora assim, era perfeita, como Deus quis. "Podia, doutor?". "Essas coisas acontecem... Agora é se cuidar melhor, se tratar.". E junto com esse comentário o médico entregou o pedido para a fisioterapia. "Procure o posto que eles marcam para você. É só fazer tudo que mandarem e você vai ficar novinha em folha.".

Mas ela não esquecia o "Oh! Olha isso!" do sujeito que cortou o gesso depois de um longo período de sofrimento. Aquela tormenta amarrando seu pé, aquela coceira, aquela queimação, aquele inferno espetando seus pontos e, como se não bastasse, aquele "Oh! Olha isso!" de um dos moços de branco e luvas nas mãos. E a troca de olhares entre eles. Ela parecia boba, mas não era. Ela notou. E ouviu os sussurros. E se não sussurrassem? Se falassem com ela, se esclarecessem? Se ajudassem? E se?... Mas eles sussurravam. E o que ela poderia fazer? "Fizeram isso errado, não podia ter prendido aqui, ó...". "É, apertou demais, agora deve ficar assim...". Ouvia as frases enquanto seu pé era puxado de um lado para o outro, torcido, maltratado, e sua mente se esforçava para acompanhar o ritmo de um novo sofrimento.

E logo em seguida veio o doutor com a cara amarrada, evitando conversa. Só olhou para ela e deu aquele pedido para levar no posto. "Essas coisas acontecem...". Ele repetia como um mantra.

E a frase retumbava na cabeça de Ana até hoje. A frase e todo o resto. E ela sentia aquele arrepio na espinha, um sentimento que não compreendia. Seria medo?

Ela ia pela rua com seu pé esquerdo meio torto, meio desequilibrada, como se já não fosse suficientemente desequilibrada antes e ainda precisasse de mais essa marca.

Tinha levado o papel no posto, afinal era algo simples, podia esperar, ia melhorar. Tinha que se cuidar. E esperou.

E continuou esperando.

Esperou mais um pouco. "Já conseguiram marcar minha fisioterapia? Pediram para ligar de tempos em tempos para saber se...". "Ainda não, senhora. Tem que aguardar. A gente informa. Tem que aguardar."

E aguardou. E aguardou. E o agendamento não saiu. Procurou o posto pessoalmente outra vez.

"Moça, veja minha situação. Já tem meses que estou esperando...". "Vamos agendar, senhora. Tem prioridades, tem que respeitar a fila, olha só quanta gente tem na sua frente. Olha!". E Ana olhou para o bolo de papéis que a outra mostrava: tanta gente necessitada, tanta gente desamparada...

E tinha os comentários dos colegas no trabalho, as pessoas na rua, os olhares de pena. "Coitada! Tão jovem...". "Dizem que engessaram torto.". "É, agora vai mancar assim.". "Parece que está esperando o posto marcar fisioterapia". "Já saiu, Ana? Tem que insistir. Eu fosse você ia lá e fazia um barraco!".

E tinha as notícias na televisão. O prefeito rezando um discurso incompreensível, que a saúde ia bem, os investimentos, os avanços incomparáveis, tudo funcionando como devia. E ela trabalhando como um burro, esperando.

E tinha tanto serviço e tão pouco tempo para se preocupar consigo mesma. Limpa daqui, esfrega dali. "Esse povo não sabe que se quer achar tudo limpo tem que ajudar a manter?! Não basta só esfregar e esfregar tudo todo dia, tem que ter cooperação  também! Queria saber como é a casa deles..."

E assim ia se tornando amarga. E então um dia ela se cansou, não de limpar, isso tinha de fazer, mas de continuar esperando. E então ela foi. Não no posto fazer barraco. Não adiantava. Guardou um dinheirinho, afinal falta de carne e leite não matava ninguém. E do que mais ela poderia se privar? E foi. Procurou uma clínica particular. Precisava fazer a tal fisioterapia. Já não aguentava mais a cara da Dona Maria enquanto ela arrastava tropegamente o pé esquerdo, que era forçado a avançar pelo pé direito, o movimento quase contínuo, não mais perfeito como Deus fez, e logo em seguida o travamento, o brusco safanão, a dolorosa pancada, o golpe do destino, a lembrança mais viva do acidente... Um pé, depois o outro. Um pé, depois o outro. Caminhar, antes, era tão simples, tão irrefletido... Por que ela? Tinha de se tratar.

E foi. Agendou horário, cumpriu as exigências, se atreveu a se preparar para melhorar, ousou ter esperança.

Chegou à clínica, mancando. O pé direito vinha, mas o esquerdo... vinha bruscamente. O rapaz do balcão a atendeu. Ana perguntava pela fisioterapeuta, se estava tudo confirmado com ela, se poderia simplesmente aguardar que ela chamasse... Ouviu as orientações e comportou-se. Mas o rapaz do balcão interviu educadamente, orientando: "sim, a senhora pode esperar, ele já vai te chamar." Era ele.

Ana refletiu sem muito refletir. Era ele. Mas esperou. E ele a chamou para a avaliação. Tinha de passar por isso para que fossem determinados os exercícios que a ajudariam a melhorar, então ela passaria, afinal ia melhorar. E como era isso? Não sabia. Sabia que ele teria de examiná-la. E não era ela. Era ele. Foi.

Aparentemente tudo normal, suportável. Conversa amigável, respeitosa. "Deita aqui e vamos fazer uns testes. Você sente dor se faço esse movimento?", ele começou."Não.", disse ela. "E esse?". " Não.". "E então...". Opa, aí não dói, ela pensou. Não me queixei de dor nesse lugar. Talvez ele tenha só esbarrado. Precisa me examinar. É profissional. É como se fosse um médico, não é? Devia chamá-lo de doutor por isso? O que era um doutor? Opa. Esse lugar aí não dói. O que é isso?

"Pode descer e aguardar lá fora que vou preencher sua ficha de exercícios e já começamos."

Já acabou? Ela quis perguntar. Terminou? Não quer apalpar um pouco mais? Ou será que ele não tinha feito isso?

Ele a chamou para o salão dos exercícios. Ana o acompanhou. Ela tinha de melhorar. Não tinha? E foi.

E começou outra vez. "Joga seu corpo pra frente, cabeça erguida, olhando pra fora. Vamos lá, assim. Isso... Agora contando. Até trinta, depois para e começa de novo."

Ele empurrava as costas de Ana para a frente, ensinando pacientemente. Coitado. Por que ela suspeitara? Opa. Não é possível. Tinha mesmo necessidade de descer tanto a mão nas suas costas? Aí não! Ela quis gritar.  Mas a voz não saiu. Aí não! O que esse sujeito está... E ele se afastou. "Continue assim. Até trinta, descansa e vai de novo.".

Ela queria ver a cara dele, avaliar, mas não via. Ela queria ver a cara dos outros fisioterapeutas da sala, suas reações, mas não via. Queria saber o que viam os outros pacientes, o que sentiam, e não podia. Estavam todos estrategicamente posicionados em sua retaguarda. Ela respirava, sufocando. Ninguém via nada? Ninguém falava nada?

Veio, enfim, uma moça para ajudar nos outros exercícios. Ufa. Era uma ela, ia ficar tudo bem. Tinha de parar de mancar, precisava melhorar.

A moça ajudou, foi tudo bem. Era suportável, ia passar. Doía, mas ia passar. Ia ficar novinha em folha. Ia. E ele voltou. Outra vez. Veio corrigir uma posição. Será que só ele sabia tudo? A moça não era burra, ela também sabia.

"Agora você vai deitar aqui. Isso. Pode virar pra baixo. Segura assim. Aí...", ele dizia. 

OK. Já entendi. Já entendi! Não! Não precisa mostrar mais! Ela queria falar, mas a mão dele seguia deslizando por seu corpo. Não. Não era possível. Não era necessário. Não! Que inferno que a voz não saía! Onde diabos se metera sua língua? Onde diabos estava aquela fúria de quando a Dona Maria se queixava de um serviço mal feito? Onde se enfiara aquela ira de quando o prefeito falava na televisão e ela comentava com os amigos? Onde ela estava? Onde? Ana!

E ele se afastou. E a cabeça de Ana girou. Ela queria vê-lo, queria encará-lo e perguntar qual era a dele, queria saber o que ele queria. Mas ele estava atendendo outra pessoa. Tranquilo. Asqueroso. Calmo. Canalha.

E outra moça veio ensinar outro exercício. Uma moça. Como ela. Agora ela ia falar, a moça ia ajudar.

"Você tem que fazer esse movimento. Estica o pé. Aí. Não. Tem que esticar.". E Ana se concentrava. Tinha que melhorar. Aquilo doía. Aquilo tudo doía muito. E aquela queimação nos olhos e no peito? Ela tinha era vontade de chorar. E gritar. Mas Ana não chorava. Ana era forte? "Não. Corrige aqui pra mim.". O toque da moça era suave, sem malícia. Sem medo. Ana podia melhorar. E lá vinha ele. Isso não vai acabar nunca?

Aquilo já tinha passado dos limites, era um desaforo. Esse sujeito não era doutor não. Quem era doutor? A palavra dava asco. Ana poderia cuspir no chão ali mesmo...

Qual é a dessa mão? Qual é a desse cara?! Gritos torturantes entalados na garganta. Ana não falava. Ana achava que tinha ficado muda. Ana não sabia o que estava acontecendo? Ana era tola. Ana não valia nada. Ana deixava. Ana.

"Ana, dói?"

DÓI. NÃO ESTÁ VENDO? Não te ensinaram? O que você pensa que está fazendo? Ana era muda. Ana era cega. Ana era tonta.

A polícia. Tem polícia nesse lugar?

Ele estava longe e logo estava perto de novo. Isso não vai acabar? Ana tinha que melhorar. Ana mancava. Tinham entortado seu pé esquerdo. Ana não podia melhorar?

"Você entendeu o que tem que fazer?". A moça perguntava. "Entendeu que tem que tentar praticar sozinha?"

"Sim."

Ana entendeu. Entendeu que tinha que sumir. Que aquilo era um desrespeito. Um disparate. Não era possível. Como diziam?... "Em pleno século XXI?". Um doutor? Ela podia até gritar. Quem acreditaria? Era a palavra dela contra a dele. Era frescura, foi sem querer, era necessário, era da cabeça dela.

Não. Não tinha acontecido com ela. Ana era forte, calejada, já enfrentara tantas coisas, já enfrentara coisas parecidas. As amigas também. As amigas falavam. Todo mundo sabia que acontecia. Dava na tevê...

E Ana sabia falar. Sabia reagir. Sabia que existia uma história de direitos. E de deveres. Deveres ela conhecia bem. Tinha muitos, até demais.

Não. Ela não estava calada. Ela ia falar. Ele que viesse se engraçar de novo. Ela falava.

Mas ele veio e Ana se calou.

"Agora você está liberada.". Ele ousou falar. Ele tinha língua, tinha voz, o canalha falava.

"Você volta amanhã?"

Ele parecia ansioso, determinado. Ela tinha voz. Tinha língua. Não era muda.

"Sim.". Ela precisava melhorar. O pé não tinha nascido torto, era perfeito do jeito que Deus fez, não doía, não... Era simples, essas coisas aconteciam, tinha de se cuidar e melhorar.

Não era possível. Ele era doutor. O que era um doutor?

Não podia gritar, não é? Não era doida, não era vagabunda, não era.

Ana sentia, Ana sabia, mas Ana se calava, e o silêncio gritava, o silêncio feria, a cara queimava. Ana era forte. Ana não era assim.

"Então até amanhã. Se cuida.". A ferida estava lá. Como ele podia?

"Tchau."

E Ana saiu mancando pela rua.


Fim.
Fim?

Comentários

  1. Obrigada pela leitura! Dá para sentir o impacto, não é?

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  2. Você é uma pessoa muito especial, te desejo toda sorte do mundo!

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    1. Muito obrigada pelo carinho! :)
      Em breve poderá encontrar mais histórias por aqui.

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  3. Espero que você não tenha desistido da literatura. Gosto muito das suas histórias e tenho saudades de ver você por aqui. Torço para que tenha muito sucesso e não nos deixe sem as suas histórias!

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    1. Muito obrigada pelo carinho e pelas palavras de incentivo! Isso é verdadeiramente importante para mim. :)
      O meu sumiço se deve à finalização do primeiro livro ambientado em Arcaires, A sombra de uma ameaça, que, em breve, será publicado. Estou fazendo os ajustes finais. E, creia, dá uma trabalheira sem fim! rsrs Darei mais notícias dele em breve.
      A próxima crônica de Arcaires também está sendo produzida. Não deixe de acompanhar!
      Abraços.

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  4. Em uma palavra: MARCANTE!

    O texto é curto, mas o seu conteúdo é intenso e profundo. A tensão desenvolvida, para tratar da situação absurda de abuso e a violência contra mulheres que ainda ocorre me pleno século XXI, neste conto corta na carne para chegar à emoção. Parabéns pelo seu inegável talento! Não páre nunca.

    Abraços.

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    1. Muito obrigada pela leitura, Carlos Eduardo, e pelas palavras!

      Esse conto realmente foi feito para incomodar, para machucar. Fico feliz por saber que você se comoveu...
      Sabemos que situações como a retratada nesse conto atingem mulheres diariamente em todo o mundo. A maioria tem, pelo menos, um caso para contar...
      Sabe, não é fácil escrever sobre isso, explorar tais terrenos... Mas, diante de uma realidade tão cruel, como ficar calada?
      Sabemos que não é possível combater situações de abuso e violência apenas com palavras, mas penso que é importante nunca se calar. E, mais importante, é ver que ainda há pessoas que sentem a dor do outro e se emocionam diante de textos assim...
      Com uma reação como essa, é possível imaginar que a literatura está cumprindo seu papel... Se a literatura é uma arma, então vamos usá-la!

      Obrigada... Abraços.

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