Inexplicável

Challenge accepted!

O @mochileiros_do_multiverso lançou um novo “Desafio de Escrita Criativa” e agora o tema do conto é "sonho". E lá vamos nós embarcar nessa aventura!

O perfil do Instagram @mochileiros_do_multiverso é uma iniciativa de Bernardo Stamato, que incentiva, promove, divulga e cria literatura de qualidade, além de produzir conteúdo relacionado à escrita criativa para autores de fantasia. Os contos do Desafio são divulgados lá no perfil do Bernardo de tempos em tempos.

Curtiu a ideia? Então que tal escrever também? Afinal, quem conta um conto, aumenta um ponto 😉 Vamos nessa?! 

Se quiser conhecer outro conto que escrevi para participar de um desafio anterior do Mochileiros, ele está aqui.

Lá vai o meu texto sonhador! Desfrutem, caros arcairianos!😊

 

OBSERVAÇÃO IMPORTANTE: recomendado para maiores de dezoito anos (contém descrições de cenas de abuso e violência). 

 

 

INEXPLICÁVEL

  

Era uma vez, nas terras de Arcaires (ou poderia ter sido em outro reino qualquer nem tão tão distante), uma garotinha chamada Ihara, que fora tirada das ruas por um monge que habitava um mosteiro pomposo e cheio de servos, os quais adoravam o ídolo Sonderna.

Athor, o monge, educara a garotinha conforme os preceitos de Sonderna e Ihara acreditara que podia esperar por milagres... Até que ela cresceu...

 

I.

 

Ihara se lembrava de ter treinado naquela manhã. Pouco. Mas treinara. Ela podia se dizer uma moça disciplinada. Desde que o mestre a escolhera, ela não faltara um dia sequer com suas obrigações como discípula. Ajudava-o em todos os afazeres domésticos, buscava água no rio, limpava a fossa, cozinhava, alimentava as galinhas, tratava dos porcos, ordenhava a vaca, caçava. Além disso, não deixava uma vez sequer de prestar reverências ao ídolo mais importante de seu culto, Sonderna. E a tradição mandava que isso fosse feito três vezes ao dia, curvando a cabeça, fechando os olhos e gritando o nome da divindade sete vezes para o vento leste. O ídolo ainda não lhe retribuíra com favores, mas seu mestre asseverava que, se fosse uma boa devota, logo receberia recompensas além do que poderia desejar em seus sonhos mais esperançosos.

Ihara nunca tivera sonhos, porém, quando soube da possibilidade de realizar desejos, julgou conveniente ser uma boa devota. Com isso, tornar-se uma monja respeitável para merecer os favores de Sonderna acabou se tornando seu maior objetivo. Dessa forma, cumpria com todas as obrigações as quais seu mestre apontava como dignas de uma fiel. Ademais, não deixava de treinar com o sabre, como ele próprio a instruíra.

Athor, o bom mestre, a escolhera quando ela tinha lá seus nove a onze anos. Naquela época, Ihara não sabia contar o tempo ao certo, então tinha apenas uma noção vaga da passagem de sua existência em Arcaires. Sabia, unicamente, que existia – muito embora isso não fosse algo lá tão significativo. Todavia, desde que Athor a apresentara ao culto de Sonderna, ela havia aprendido muito. E agora supunha, ao menos, saber contar o tempo.

Claro que todo conhecimento vem com sacrifícios. E isso Athor esclarecera logo. Ensinou os afazeres necessários à manutenção do templo e mostrou, além de tudo, que, para agradar Sonderna, era importante que Athor, seu representante mais digno em toda a região da Floresta das Feras, em Arcaires, estivesse satisfeito.

Athor ficava satisfeito ao ver a discípula se alimentar e ficar forte, ficava também satisfeito ao vê-la crescer. Mas ficava particularmente satisfeito quando ela o alimentava e quando cumpria suas obrigações sem fazer corpo mole. Naturalmente, quando algo lhe desagradava, ele a recompensava com socos e bofetões. E tudo isso constituía parte da rotina de purificação da menina, conforme o mestre repetia.

Dessa maneira, haviam se passado três anos desde que Athor a resgatara das ruas e chegara o tempo em que, pela primeira vez, ele desejara lhe mostrar como ficaria completamente satisfeito.

E foi então que Ihara teve dúvidas quanto à importância de realizar desejos.

 

II.

 

Acontecera em um dia de ventos tempestuosos, noite escura e lua encoberta. Elementos comuns que poderiam ter passado despercebidos, contudo não fora esse o caso.

Athor a procurara nos fundos da cozinha, onde ela dormia no chão, sobre uma esteira de bambu, junto ao fogão a lenha. Ali era o lugar mais quente do casarão, mesmo com a brasa já apagada no fogareiro, e o mais apropriado para Ihara no inverno, já que lhe faltavam peles de lã e porque Athor não permitia acender a lareira se ele não estivesse na sala para usufruir de seu calor. E explicava à discípula que o frio era um sacrifício e, por consequência, agradava a Sonderna, além de que prepararia seu corpo para as batalhas vindouras. E ela aquiescia. A discípula de um monge deveria aquiescer.

Na fatídica noite tempestuosa, ele a procurara para ensinar-lhe a mais pura lição, a primeira e mais importante, como dissera Athor. Uma vez serva de Sonderna, serva seria de seu representante e, consequentemente, de suas vontades mais profundas. E a vontade de Athor, naquele momento, era possuí-la.

Athor se acercara de mansinho, dissera uma palavra de comando, evocara a sua fé, gritara para o ídolo e oferecera a sua carne, fazendo um corte em seu próprio pulso, levando, em seguida, a mão à boca da menina e obrigando-a a tomar de sua veia. E oferecera a carne de Ihara, sem tocar nela, embora com os lábios úmidos ao pronunciar o nome da discípula. E mandara, por fim, que a menina repetisse os seus gestos e palavras. Com os olhos assustados, ela obedecera, perdendo lágrimas ao ver o próprio sangue escorrer do pequeno pulso e ao sentir os dentes sedentos do mestre em sua pele. Seu único propósito era obedecer?

Ihara não ouvira nenhuma resposta de Sonderna, mas Athor não parecia insatisfeito com isso, pelo contrário, ele estava particularmente feliz naquele dia, isso caso um sorriso maquiavélico pudesse ser considerado felicidade.

Depois do breve ritual, quando a menininha se voltara receosa para encarar o estranho sorriso sujo de sangue do mestre atencioso que vinha lhe ensinar uma importante lição no meio da noite, ela notara o fogo queimando em seu rosto corado, seus grandes olhos esbugalhados e sua sagrada boca entreaberta. O corpo peludo já semi-despido. Uma composição aterradora. Mas era seu mestre e ela deveria ouvi-lo. Mesmo que, contraditoriamente, um instinto a avisasse para correr. Um carneiro se sentiria assim ao ver um lobo?

Então Athor a fitara de volta. Ela nunca se esqueceria daquele olhar. Sedento, implacável. E ele fizera uma nova prece a Sonderna. Oferecera outra vez seu puro sacrifício, metendo o pulso ensanguentado novamente na boca da menina e revirando os olhos de prazer. Tendo terminado de consagrar a menina impura, mandara, por fim, que ela abrisse as pernas.

Todo o ritual e os comandos lhe haviam soado estranhos, mas ela se comportara como uma devota. E ele arrancara suas pequenas vestes. E viera para cima dela, atirando-a ao chão da cozinha.

Athor movimentara-se violentamente.

Pressionara os frágeis braços da menina contra o bambu a ponto de deixar as marcas roxas de seus apertos na pele fina e a tatuagem do trançado das varas da esteira em suas diminutas costas desnudas.

Ele deixara o peso de seu corpo a sufocar, a estapeara e a colocara em várias posições.

Pressionara muitas outras partes de seu corpo com força, de modo que hematomas logo se espalharam por todos os lados, inclusive em seus seios em formação e em suas diminutas nádegas. 

E a fizera sangrar naquele dia. Algo que nunca lhe havia acontecido antes.

Depois de cumprir o ritual sagrado, ele se afastara e a largara jogada tremendo no chão frio da cozinha, recomendando, com voz empastada, que, na manhã seguinte, não se atrasasse para a ordenha.

 

III.

 

Ihara se perguntara se poderia morrer ao perder aquele sangue, se deveria tratar de suas feridas ou se aquele líquido impuro que escorrera seria o bastante para o ídolo livrá-la da dor. E ela acabou por reunir forças, em seu desespero, para pedir a Sonderna que, por alguma razão que não sabia como explicar a si mesma, a levasse de Arcaires. Queria morrer? Tinha o direito de desejar? Ou, pior, seria uma herege por ousar pensar nesse caminho? Não sabia...

Pedia, em seu íntimo, que o ídolo esclarecesse para sua mente entorpecida a razão e o significado do ritual daquela noite. E pedia que a perdoasse por seus pensamentos de dúvidas contra seu mestre e que, acima de tudo, fizesse dela uma boa discípula. Se a dor era um castigo por ser infiel, que fosse purificada. 

Porém o ídolo não parecia inclinado a atendê-la, uma vez que o dia amanhecera como todos os outros haviam amanhecido. O trabalho a aguardava como sempre acontecia desde seu resgate. E a dor estava presente como continuamente estivera. 

Só que pior.

Algo mudara. Algo se perdera.

E, por algum motivo inexplicável, ela chorara naquela noite e chorara por muitas e muitas noites depois daquela. Mesmo que o mestre ininterruptamente repetisse que ela estava servindo a Sonderna, as lágrimas eram inevitáveis, incontroláveis. Cada vez que Athor se aproximava, ela pedia silenciosamente a Sonderna que fosse a última, que o ídolo a purificasse de vez e lhe poupasse daquela oferenda. Mas Athor era insaciável. E o ídolo era mudo.

Em algum momento, ela houvera mesmo sido resgatada? Teria sido melhor enfrentar as dificuldades diária das ruas?

 

IV.

 

Foram cinco anos dessa tortura. E, sempre que um arrepio gélido subia por sua espinha, a menina-moça treinava de forma ainda mais concentrada, a fim de evitar os pensamentos, contudo, sendo isso impossível, ela se via olhando para sua própria história e tentando categorizar suas dores em tipos.

Ihara, muitas vezes, não sabia identificar se sofria pelo nojento contato físico que trespassava sua alma ou se a dor era provocada por alguma outra razão. Ela não tinha muitos parâmetros para comparar, entretanto desconfiava que sua aflição decorria da soma de muitos fatores. E que, certamente, Athor era o principal deles. Mas como podia se, afinal, Athor era seu mestre?

Vivera, por todo esse tempo, no casarão que chamavam de templo e nunca saíra dele desde que chegara. Não tinha amigos ali. Os discípulos não tinham espaço para interagir entre si, apenas se reuniam para os exercícios determinados pelo mestre e sempre vigiados por algum de seus subalternos. Os aprendizes geralmente desempenhavam suas tarefas sozinhos. Além disso, treinavam seus golpes com espadas de pau em bonecos de madeira, espantalhos ou, em última hipótese, com a ajuda de algum dos superiores designados por Athor. Os exercícios com o sabre metálico eram raros, de modo que Ihara pouco podia afirmar que sua força se desenvolvia com o treinamento, embora ela se dedicasse muito.

Além de tudo, não se lembrava de seus pais, então não podia dizer que, realmente, sentia a falta deles. Consequentemente, não aprendera nada sobre afetos com ninguém. Ademais, castigos físicos eram uma constante em sua vida, mesmo antes da estada no templo.

Apanhara em muitas oportunidades ao tentar garantir seu próprio alimento, afinal, a única forma que conhecia de uma criança largada no mundo se sustentar era roubando nacos de pão ou de carne nas feiras ou em qualquer lugar que estivesse diante de seus olhos. E a única reação de qualquer pessoa que também precisasse daqueles nacos para viver seria impedir a ação da criança e surrá-la até que aprendesse a não roubar mais. Ela imaginava que esses poderiam ser preceitos da doutrina de Sonderna, todavia ainda não estavam registrados como tal.

E, nem nos seus tempos de rua, tampouco nos de templo, Ihara podia contar talentos ladinos dentre suas habilidades. Sempre fora uma criança meio devagar. Demorava a aprender, tinha movimentos travados, apesar do corpo raquítico, e não possuía reflexos. Eram falhas críticas todas as suas tentativas de se alimentar na infância e ela podia sentir o doloroso torpor decorrente dos castigos que sofria antes mesmo de os receber. Seu rosto era marcado de cortes e seu nariz era torto por ter sido quebrado por um soco. Seu pescoço possuía um colar natural – a marca dos ferros quentes que um capataz de um famigerado senhor de cavalos lhe aplicara certa vez quando ela tentara comer a lavagem dos animais no estábulo. Além disso, ela não possuía todos os dentes na boca, suas unhas eram encardidas e suas mãos eram ásperas. Ainda assim, de alguma forma, podia-se dizer uma mulher bonita. Crescera pouco, então não possuía formas particularmente atraentes, contudo, por trás das feridas e dos mirrados contornos, algo se destacava em seus olhos. Um brilho sem explicação, sem qualquer razão de existir, um brilho que deveria ter se apagado definitivamente na noite tempestuosa, ou antes, durante alguma das surras em troca de pão, ou antes ainda, quando nascera. Mas permanecia.

A dor, portanto, era conhecida de Ihara, antiga companheira, logo ela não conseguia explicar de que espécie de buraco recôndito vinha a vergonha, a raiva, a humilhação que sentia ao encarar Athor ou ao encarar sua própria face no reflexo da água no rio desde aquela noite tempestuosa. E também não sabia como aplacar a raiva por esse pensamento que preenchia o inteiro espaço de sua mente todos os dias, todas as horas.

Algo estava errado. 

Por mais que se lavasse, por mais que se esfregasse com o sabão feito de restos de porco, jamais se sentia limpa.

Ela se odiava. Odiava o mestre. Odiava o templo. Odiava os discípulos e os superiores. Odiava o ídolo que nunca a atendia. Simplesmente odiava.

E o ódio que sentia era tão puro quanto o brilho em seus olhos.

 

V.

 

Depois de passar os últimos cinco anos alimentando tal ódio, além da repulsa, do arrependimento e da culpa, Ihara, sem saber exatamente com que objetivo, passou a dormir com o sabre sob a esteira. Essa não foi uma decisão refletida, simplesmente aconteceu.

E, após um dia particularmente difícil, no qual a moça apanhara de um superior por despejar água fora do tanque e em que um colega ralhara com ela ao se esbarrarem num corredor, ela passou por um sono agitado.

Não prometo nada a você. – uma voz arranhada ecoara em sua cabeça como se saída do fundo de um poço. – Jamais a escolhi e nunca pedi a sua devoção, contudo, se vier até mim, considerar-lhe-ei digna de um favor...

Ihara acordou assustada, com a sensação de que sonhara e pensando que a floresta sombria crescera ao seu redor como nunca supusera ser possível e que, de alguma forma, não podia mais viver aquela vida. Não se lembrava de qualquer palavra que fizesse sentido, aliás não podia dizer exatamente que ouvira qualquer coisa. Tudo na sua cabeça era uma névoa confusa. Mas ela sentia que havia algo na floresta que deveria buscar. E achava que havia uma promessa, algo a perseguir. Poderia existir algum sentido em sua vida miserável?

E ouviu passos se acercando no corredor. Uma sombra avolumou-se contra a luz da lua que entrava por uma fresta da janela e Athor surgiu na porta da cozinha. A boca sedenta entreaberta, o cinturão já frouxo e as mãos ávidas estendidas à frente do corpo.

Athor se deitou sobre Ihara como sempre fazia. Movimentou-se no ritmo que lhe apetecia, estapeou-a como era seu costume. Deixou as costumeiras e visíveis marcas roxas. Por fim, levou a mão ao pescoço da moça e segurou-o com força enquanto finalizava seu ato. Ela perdeu o ar por alguns momentos. Durante aqueles breves instantes, desejou que o aperto aumentasse, assim poderia simplesmente desistir de tudo e aceitar o seu destino. - Encontraria Sonderna no caminho? - Mas, lamentavelmente, Athor a soltou e o ar voltou aos seus pulmões.

Então Ihara esperou pacientemente que o mestre-carrasco perdesse as forças e se atirasse para o lado, como por hábito fazia.

Em um justo momento de coragem, ela sacou o sabre de baixo de sua esteira e, empregando toda sua força, decepou a cabeça de seu algoz.

Lembrando-se da noite tempestuosa, ela observou o sangue escorrer do pescoço sem vida e teve um arrepio.

Sem saber exatamente o que estava sentindo, Ihara se levantou tremendo. Ajustou sua túnica, limpou o sabre nas vestes de Athor, lançou um olhar para o fogão a lenha que tantas vezes a aquecera e partiu silenciosamente do templo, desaparecendo na floresta.

 

VI.

 

Olhando insistentemente para trás e correndo como se Athor a perseguisse, ela seguiu sem rumo pela Floresta das Feras, como nunca antes fizera, respirando a friagem da noite, esbarrando em troncos de árvores, tropeçando em arbustos e com um vazio profundo dominando todo o seu ser. Ela não tinha pensamentos, apenas a imagem da cabeça decepada de Athor pairando em primeiro plano diante de seus olhos como se a acompanhasse fisicamente.

E ela seguia balançando a cabeça, tentando, com isso, apagar a imagem pavorosa e se concentrar apenas em correr. Mas o que conseguia era apenas alternar entre o reflexo da cabeça e o do corpo ensanguentados.

Não conseguiu contar por quanto tempo correu. Quando enfim parou, Ihara estava toda machucada, suava e tremia, o corpo estava febril e ela não podia ter certeza de que estava realmente vendo uma caverna que emitia uma espécie de luz rósea.

Olhou para o céu e a lua estava encoberta, o crepúsculo não chegara, a noite se adensava e uma névoa fina a envolvia. Ela respirou fundo, tentando amainar a dor que percorria suas costelas pela falta de ar. Aquela dor da liberdade nas costelas seria melhor que a da pressão do corpo contra o bambu? Ficou assim por algum tempo até que rumou para a caverna. Não movida por um instinto de se esconder, mas apenas pelo impulso de se mover outra vez. Não conseguia ficar parada. A imagem de Athor ainda dominava sua mente e ela desejava apagá-la. As mãos tremiam tanto que era preciso segurar uma com a outra para evitar que o sabre caísse.

Andou a esmo. Tropeçando, encolhendo-se, acocorando-se, abraçando-se e chorando. Sim, as lágrimas vieram-lhe por fim e ela se permitiu esse conforto. Chorar era mais fácil que pensar.

A caverna começou a se mostrar um lugar estranho. Além da luz rósea que parecia emanar da rocha, um som longínquo, não de água, mas de algum movimento fluido, como se o ar estivesse escorrendo por um duto, a atraiu. Ela se pôs a seguir o som. Fez curvas as quais jamais poderia esperar reproduzir caso tivesse de percorrer o caminho de volta – hipótese que ela sequer considerava –, passou por bifurcações e escolheu aleatoriamente a que parecia conter um ruído mais nítido.

Era como se apenas seu corpo a guiasse, uma vez que seu cérebro estava entorpecido pelas imagens do defunto, acumulado com o embaçamento parcial de seus olhos por consequência das lágrimas e somado ainda à falta de interesse em fazer qualquer escolha consciente.

E ela seguia. Chegou a cortar-se em algumas quinas pontiagudas, topou com reentrâncias que pareciam túneis, tropeçou e caiu duas ou três vezes. Até que deu com uma galeria ampla que a levou a um salão de teto alto. Olhando da galeria, o salão estava escuro e vazio. Mas ela não teve medo. Precisava da solidão. O breu parecia perfeito. A passagem para esse salão possuía um marco dourado, como um portal e, ao cruzá-lo, sentiu como se um vento gélido soprasse de todos os lados do marco e percebeu, lá dentro, desapontada, que o salão era iluminado. O tom rosa era intenso e ofuscava a vista. Passada a cegueira inicial, Ihara começou a se interessar pelo que se dava ao seu redor e olhou em volta, atenta, como se a consciência fosse recolocada em sua cabeça à força, sem saber como viera parar naquele lugar e perguntando-se, principalmente, que lugar era aquele.

Um trono dourado invertido materializou-se no meio do salão e ela limpou os olhos para olhá-lo. Sangue coagulado de sua mão riscou seu rosto, mas não a incomodou. Seu interesse agora estava avivado. Ela precisava saber aonde estava e o que era aquilo.

Pensou em seu treinamento e buscou encontrar algo que pudesse explicar uma caverna perdida no meio da floresta ou um trono invertido. Nada. Apenas uma atmosfera de mistério e a sensação incompreensível de um chamado.

 

VII.

 

Ela se aproximou do trono lentamente, olhando em volta e com um peso enorme curvando seus ombros. Arrependimento, culpa, mágoa, dor, remorso a invadiram junto com uma lufada de vento que soprou. Ela não sabia qual desses dominava seu espírito nem se o vento era real ou se ela o sentia apenas em sua mente. Sabia, sim, que caminhava quase como se fosse arrastada. 

De repente, sentiu a sensação de que deveria se curvar e caiu de joelhos. Não sabia se as forças enfim lhe haviam faltado ou se havia uma criatura obrigando-a àquelas reações.

Então um monge surgiu diante dela. E era Athor. Mas, de alguma maneira, ele estava diferente. Não parecia um fantasma ou um espectro, mas usava uma armadura prateada e um grande punhal era a extensão de seu braço direito. Um elmo encobria parcialmente sua cabeça, mas, pela viseira, Ihara pôde identificar os olhos sedentos da noite tempestuosa. Os inesquecíveis olhos.

O contumaz arrepio subiu por sua espinha e ela concluiu que havia sido atraída até ali para ser castigada. Era um assassina e Sonderna não permitiria que se safasse.

Ela deu alguns passos para trás aterrorizada e, no mesmo momento, o monge adiantou-se em igual medida. Ela se voltou brevemente para olhar se valia a pena correr e então sentiu um vento passar por sua nuca e sofreu um ataque. O sangue escorreu da lateral de seu corpo. Seu próprio sangue. O carrasco era real? Ele ressuscitara?

Indecisa, ela levantou o sabre que pendia junto a seu corpo para se proteger do próximo ataque que caía verticalmente sobre sua cabeça. Não soube exatamente como suas frágeis mãos trêmulas foram capazes de aparar aquele duro golpe do punhal. Os olhos de Athor lampejaram diante dela e suas próprias mãos afrouxaram. O punhal desceu cortando seu inocente pescoço.

Ela morrera, enfim?


VIII.


A visão do monge desapareceu e ela levou instintivamente as mãos ao pescoço, soltando a própria arma no chão. Seus olhos estavam arregalados e seu coração saía pela boca, mas a cabeça ainda estava presa ao tronco. O que fora aquilo?

Ela respirou com dificuldade, porém mal teve tempo de se recompor quando sentiu uma lufada de vento em suas costas. Teve medo de olhar, sentindo uma paralisia prendê-la ao solo. A friagem de uma lâmina atravessou suas costas e surgiu em seu abdômen. Ela olhou para baixo desesperada. Não sabia o que era maior, a dor ou a incredulidade.

Então se levantou e correu, sentindo o punhal ser arrancado brutalmente. E, no momento seguinte, o buraco em sua barriga não estava mais lá, embora o sangue ainda escorresse. E o trono estava diante dela.

Apavorada, ela fitou o objeto e o brilho do ouro reluziu diante de seus olhos. Como se despertada de repente, ela se voltou e olhou para todos os lados. Como nada viu, levou a mão esquerda ao abdômen e então ao pescoço. Não havia mais sangue, mas havia dor. Contudo, de alguma forma, a dor emanava da alma e não das supostas feridas pelo corpo.

E o monge se materializou outra vez diante de seus olhos. Ela gemeu e lágrimas desesperadas surgiram em seus olhos. A moça deixou cair o sabre e correu para a saída. Porém percebeu que não mais existia saída. O marco agora estava encoberto por uma torrente de ar, a qual circundava também todas as paredes. Ihara olhou para trás e viu que o monge caminhava em sua direção devagar. Ela estendeu a mão lentamente para a barreira de ar que tomava o portal e sentiu cortes como se infinitas agulhas perfurassem sua carne. Recuou bruscamente chupando a pele ferida. Já não podia mais controlar as lágrimas. Estava mesmo em uma prisão perpétua? Seu crime fora tão grave assim?

O monge continuou se aproximando lentamente e ela permaneceu encarando o portal, negando-se a acreditar que estava mergulhada naquele pesadelo e esperando, como se a saída fosse se abrir a qualquer momento, como em um despertar. Tentou gritar, todavia a voz não saiu.

E o monge a alcançou. Ele a segurou por trás e empurrou o pequeno corpo de Ihara para a torrente de ar. A dor foi infinita. Ela não sabia o que era pior, o contato do defunto-mestre ou as agulhadas de ar.

 

IX.

 

Ihara gritou com a máxima força de seus pulmões até a garganta doer e ficar rouca:

– Paaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaare!

Athor a soltou e, como num sonho, desapareceu. A torrente de ar permanecia formando uma barreira, porém não mais a feria. O breu tomou o salão e ela teve tempo de respirar por alguns momentos. Tossiu e sentiu a garganta arranhar. Tocou em suas inúmeras feridas e não havia perfurações nem qualquer marca de que houvessem existido, a não ser o sangue. Seu corpo, aparentemente, ainda estava intacto.

Intacto não. Isso era impossível. Uma vez que Athor a tocara. Uma vez que Athor existira. Suas feridas eram infinitas. Sua alma estava maculada para sempre. Não seria possível se curar. Tampouco seria possível olhar-se mais uma vez ou olhar aquela fera que parecia surgir de seus próprios pensamentos. 

E onde a fera estaria agora afinal?

Ela se voltou para o salão e o negror começou a clarear. 

– Por favor, não... – ela se viu desejando o impossível, assim como ousara desejar... como ousara acreditar...

E, dessa vez, o róseo iluminou o trono e uma figura embaçada surgiu nele, também de ponta a cabeça. Uma espécie de chifre colorido apontava para o teto e não para o solo, surgindo de uma cabeça que se posicionava como se estivesse girada no pescoço, de modo invertido. A criatura se sentava no assento flutuante e suas vestes de inúmeras cores não caíam para o solo. De seus quatro braços saíam quatro mãos com muitos dedos pontiagudos, como garras afiadas. Um queixo enorme e peludo se esparramava como uma enorme protuberância, e olhos marrons luminosos refletiam de forma aguada o róseo que iluminava tudo ao redor.

Ihara sentiu medo, mas também sentiu euforia. Teve um momento de arrependimento, contudo tornou à fase do ódio e viu aflorar um desejo de vingança juntamente como uma necessidade de perdão.

– S-s-son-derna? – ela não soube de que lugar afinal vinha sua própria voz, rouca como se há muito esquecida, profunda como se há muito perdida, falha como se temerosa e firme como se convicta. Nada disso vinha dela. Ou vinha?

Você me procurou. Aqui estou. – ouviu horrorizada o som que não vinha da boca da criatura à sua frente, mas que ecoava pelas paredes como se surgido das profundezas da rocha.

Ela recuou um cambaleante passo.


X.


Por que não o confrontou novamente? Eu lhe dei a oportunidade de consumar sua vingança e aplacar de vez a sua ira.

Ihara ouviu de novo aquela voz rara e se perguntou se estava sonhando. Era um pesadelo. Quando terminaria?

A moça olhou em volta. Seus olhos doeram pela luminosidade. Era como se até mesmo o ambiente a obrigasse a encarar a esdrúxula criatura no trono. Aquela era a divindade que adorava? Estava mesmo falando com ela?

– Eu... eu... O senhor... – sua fala era desconexa como sua mente. – O monge...

Não tenho nada com seus problemas. Deve resolvê-los você mesma, porém dei-lhe a oportunidade de vingar-se de vez, mas sequer tentou. Se a deixar, sofrerá infinitamente. Se interferir, sofrerá da mesma forma... Estou em um dilema.

– Vingar-me? – Ihara parecia considerar a hipótese seriamente pela primeira vez.

Vingar-se pelo quê? A pergunta ecoava em sua mente. Não era ela a assassina? A que se livrara do mestre que apenas queria lhe ensinar uma lição, purificar-lhe a alma impura? Seria justa sua vingança? Seria essa a salvação?

Então a criatura no trono desapareceu e Athor surgiu outra vez, segurando o punhal. O monge partiu para cima da discípula e ela se defendeu com o sabre. Aparou o golpe mortal que mirava seu coração. E, na sequência, aparou outro que vinha em direção ao pescoço e outro que lhe cortaria o braço direito. De repente, percebeu que possuía força, a mesma força que servia para cortar uma cabeça, essa estava em seu punho erguido manejando o sabre. Era capaz. Athor não a derrotaria outra vez.

Entrou em um combate feroz, mortal e infinito. Por muito tempo lutou sem calcular minutos, horas ou dias. Sentiu cansaço extremo, contudo não teve qualquer sensação parecida com a fome ou a sede, tampouco sentiu medo, medo de não sobreviver, medo de encarar o que viesse depois, medo de se olhar outra vez no reflexo da água. E não sentiu dor, tampouco soube se a causou, afinal a miragem de Athor não demonstrava qualquer emoção.

Não saiu incólume, todavia. Muitos foram os golpes que recebeu. Todos com sangue, entretanto sem feridas. O sangue seria seu eterno castigo? As manchas do confronto lhe ficavam pelas vestes, pelo chão, pela arma, porém nada transparecia em Athor, que era o mesmo desde o princípio, como se fosse imutável, inquebrável, inabalável. 


XI.


Enquanto duelava, Ihara começou a se acostumar com a ideia de que talvez aquele fosse o seu destino: combater indefinidamente, sem objetivo, sem causa, apenas para satisfazer o seu coração magoado, ferido, injustiçado, culpado. E combater aquilo que não mais agia, apenas desferia golpes em reflexo aos seus. Aquele ser imutável, que a ferira e desaparecera para sempre - e ainda assim existia -, que a marcara e a abandonara com sua dor, que a enganara, ludibriara. Que ela matara. Como poderia dele se defender? Como poderia saber o que fazer? Como poderia não enfrentá-lo eternamente?

A cada golpe potente que saía de seu braço direito, entretanto, Ihara sentia que lançava fora o seu ódio, a sua ira, o seu remorso até que chegou um ponto em que ela começou a ver aquela luta não mais como um castigo. Lutar não era em vão se, em algum momento, ela pudesse se curar afinal. Estaria nascendo um impossível fio de esperança? Poderia estar Sonderna recompensando-a por sua força o invés de estar castigando-a? Achava que nunca saberia a resposta.

Mas achava que aquela caverna era apropriada para ela. Começou a aceitar o róseo cegante como parte da atmosfera e se adaptou a ele não mais vendo-o como um obstáculo, mas como um elemento necessário e propício à visão. Passou a achar que o vento cortante que a circundava era não mais uma barreira, mas uma espécie de proteção. E Athor... talvez não fosse um inimigo atroz, mas um obstáculo a ser superado.

E Sonderna? Achava que o ídolo não mais fazia parte de seus pensamentos, embora talvez compusesse uma atmosfera distante na qual ela porventura estivesse em dívida com alguém ou algum ser. Entretanto, isso fazia parte do passado porque, enfim, chegara o momento de desferir o golpe fatal, o último, o que eliminaria de vez o carrasco.

Ela tinha o sabre pronto. Agora era forte. Lutara por anos a fio, talvez eras. Incansável. Superara infinitas barreiras, vencera seus próprios limites. O combate que, a princípio, lhe parecera eterno, agora, aparentemente, poderia ter um fim. Poderia?


XII.


Ihara derrubou Athor e caiu sobre ele pronta a cortar sua cabeça outra vez. Sem refletir, lançou o sabre, porém, prestes a romper a artéria principal e separar novamente aquele corpo sujo da cabeça assombrada, ela se interrompeu. Parou a não mais que um milímetro do golpe fatal e encarou aqueles olhos. Ainda os mesmos da noite tempestuosa, os mesmos de suas dolorosas lembranças. E percebeu que as feridas ainda estavam abertas, como se na carne viva, e pensou que a única forma de apagá-las seria eliminando outra vez aquela mancha de seu passado, decepando aquele monstro e fazendo-o pagar. Mas algo como a força lhe faltou. E Athor não reagiu, como se congelado no tempo do suspense, esperando. Ihara não se decidia, congelada no tempo da dúvida, no instante infinito que normalmente não se prolonga.

E ela pensou no porquê... Por que, se tinha essa escolha agora, não a tivera antes? Por que sempre o obedecera? Por que não pensara em correr antes que ele a tocasse? Por que não considerara poupá-lo antes de decepá-lo? Por que não fugira tantas e tantas vezes em que estivera em apuros? Por que não fora forte? Por que ele tivera escolha e não ela? Por que não poderia ter morrido antes de ter nascido? Por quê?...

Por que se continha quando tudo que queria era que ele sofresse? Por que queria tanto que ele sofresse? Por que o fogo do ódio e da vingança ameaçavam consumi-la pela eternidade caso aquele pescoço não rolasse a seus pés? Por que lhe era dada essa escolha logo agora quando ela queria que tudo simplesmente acabasse? Por quê?...


XIII.


E Ihara, quase inconscientemente, deteve a mão do sabre e recuou o golpe, arrancando apenas leves gotas de sangue da artéria atingida superficialmente. E Athor, ou o que quer que fosse aquela aparição, desapareceu diante de seus olhos.

Ihara restou sozinha no meio do salão róseo. Mas a luminosidade diminuiu e o negror e o vazio tão desejados caíram sobre ela. Contudo a moça não sentia como se eles a pressionassem ou a derrotassem, sentia como se houvesse, não eliminado, mas aprisionado a sua dor aquém do alcance do vazio daquele salão. Com o desaparecimento do monge, um peso parecia ter sido liberado de seus ombros e ela achava que ele não reapareceria, pelo menos por um longo tempo.

Outra vez, não sentia fome nem medo, aliás, não achava que sentia coisa alguma. Ela teria morrido? Estaria aprisionada para sempre? Veria, alguma vez, Sonderna e compreenderia os seus desígnios?

Isso não importava. O que importava é que agora podia se sentar e descansar um pouco.

E foi o que ela fez.

 

Fim.

 

 

P. S. Sobre a inspiração para este texto...

Fiquei com o tema do desafio vários dias na cabeça e não surgiu nada. A ideia só veio quando eu estava lendo o conto "O Cavaleiro do Caos e a Caverna dos Espelhos", do autor Bernardo Stamato, e após ter lido também o conto “Três badaladas”, de Eduardo Kasse... Não há dúvidas de que ler alimenta a criatividade, certo?

Mas, mesmo depois dessas leituras inspiradoras, ainda levei dias (acho que meses rsrs) para conseguir dar um final a essa narrativa dolorosa (escrever sobre coisas tristes, não duvidem, fere também a autora). Não sei se acontece com todos os autores, mas alguns textos dominam de tal forma minha mente que, enquanto não ganham vida e saem de mim para se ressignificarem no mundo dos leitores, eu não tenho sossego... kkkk

Enfim, agora que ele foi para o mundo, certamente liberou caminho para outros escritos e outras leituras!

Então, caros arcairianos, agora que vocês chegaram até aqui, contem-me sobre sua experiência com essa leitura ou com suas próprias escritas! Vou adorar saber se o meu continho os marcou de alguma maneira ou se alguém se identificou com minha forma de escrever! 😉

Obrigada por me acompanharem até aqui!😘

Comentários

  1. Você é muito talentosa! parabéns!

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    Respostas
    1. Muito obrigada, caro(a) leitor(a)!
      Fico feliz que tenha gostado do texto! :)
      Abraço <3

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